19.12.11

CALOR ANIMAL

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O meu amigo Louis Le Clésio passa a vida a protestar pelo facto do meu cão encher o interior do barco de tufos de pêlo preto. Eu argumento que sempre é preferível apanhar uns tufos de pêlo preto, do que apanhar uns pêlos pretos solitários e de origem duvidosa. Entramos de seguida na sempre estéril argumentação sobre o significado, no contexto, da palavra duvidosa. Como está bastante calor aqui em Béquia, sabe bem velejar e sentir o vento a acariciar os corpos nus, de modo que quando a troca de palavras chega à fase de ilustrar a definição da palavra duvidosa, os olhares cruzados queimam os corpos e a discussão dilui-se e escapa-se pelos buraquinhos da borda falsa e cai ao mar, para voltar na brisa marítima, qualquer outro dia em que o tema venha à baila. Invariavelmente, o cão como que sabendo que naquele momento é o centro das atenções, chega-se a mim e apoia a cabeça no meu peito. Sinto o seu calor e a sua postura, como quem pede desculpa de ser o animal que é, com uma grande reserva de tufos de pêlo para cair, não podendo fazer nada para o evitar. Olho para o Le Clésio com a intenção de o desancar pela insensibilidade demonstrada, mas fico desarmada com o sorriso radioso que me lança, sorriso já ladeado por dois copos na mão esquerda e uma garrafa de Mout Gay reserva na direita, já meia cheia (meia vazia para nós). Palavras, leva-as o vento, como diz o ditado. Fica a amizade e o calor, neste caso o calor que nos aconchega na entrega sincera e simples do animal, tão diferente dos esquemas e das complicadas relações humanas.

21.2.11

O SENHOR ANÓNIMUS SÁIDE

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Levantou-se da cadeira e foi com um certo ar de enfado que abriu a porta ao rapaz da Pizza Na Hora. Nem o sorriso meio comercial com que foi presenteado enquanto recebia a enorme caixa tamanho XL o afectou. E foi com agrado que fechou a porta e se dirigiu para o escritório, bastante desarrumado até para o seu gosto. Nos últimos tempos já não saía muito de casa e o escritório era o local onde passava a maior parte do tempo.

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Partiu a Pizza em fatias estreitas e pequenas, empilhou-as numa travessa e dirigiu-se para a mesa do computador. Era uma mesa espartana que contrastava com o resto do espaço. No centro, apenas pontuava um computador portátil e respectivo rato. Na ponta, um candeeiro de halogéneo iluminava o resto da mesa com uma luz branca que se misturava com a luz ténue do ecrã aceso.

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Matraqueou o teclado na certeza de um qualquer endereço electrónico e recostou-se saboreando uma fatia de pizza enquanto a página se resolvia na janela do portátil. Era um blog que não conhecia, virgem de si e dos seus comentários. Sorriu na antecipação do prazer e comeu outra fatia, retardando o momento sempre fascinante em que começava a percorrer os postes até encontrar um que lhe merecesse um comentário. Quando isso aconteceu, fechou os olhos como que a permitir que a inspiração o iluminasse e de seguida começou a escrever febrilmente.

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Quando carregou na tecla Enter foi o momento para comer mais uma fatia e observar o texto que tinha escrito. Começava sempre por, Anónimus Sáide, e depois vinha a prosa, venenosa e irritante, como era a sua imagem de marca. Não havia contemplações nem palavras gentis. Desde que tinha descoberto o anonimato, a sua verdadeira pessoa, o seu interior sempre amordaçado, tinha finalmente começado a falar sem ter que dar a cara ou enfrentar opiniões contrárias às suas. Era uma espécie de voyeurismo activo que lhe dava imenso prazer.

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Na travessa, jazia uma fatia fria e descolorida, quando fechou a tampa do portátil e se espreguiçou. O sol teimava em entrar por uma fresta da janela quase fechada. Já é manhã, pensou, Estou capaz de ir tomar um bom pequeno-almoço. A noite tinha sido gloriosa em comentários e tinha a certeza que o veneno que deixara iria fazer estragos.

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Estranhou quando entrou no café e as pessoas se afastaram à sua passagem, enquanto se dirigia para o balcão. Sente-se bem?, perguntou-lhe o empregado, afastando-se dele com um certo ar de repulsa. Quis esboçar um sorriso amigável e não conseguiu. A face não reagiu. Ouviu o empregado dizer-lhe ainda que, O melhor é sair para não assustar as pessoas. Quis dizer qualquer coisa, mas a voz não lhe saiu. Confuso, dirigiu-se para a saída através do corredor aberto pelas pessoas que se afastavam à sua passagem.

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Na rua, quando o polícia o interpelou, ainda teve o discernimento de tirar o bilhete de identidade da carteira para mostrar quem era. Com efeito, já não se lembrava quem era ou como se chamava, e não foi com espanto que leu no bilhete de identidade o nome de Sr. Anónimus Sáide. Espanto teve, quando voltou o bilhete de identidade para ver a fotografia da sua face, como era na realidade, e viu que já não tinha face. Tinha-a perdido na febre do comentário anónimo.

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(pintura de René Magrite)

2.1.11

A GATA DE SCHRODINGER

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“Para mim, tal como sou agora, hoje é o último dia. Este é o meu último entardecer. Quando o novo dia nascer, eu, tal como sou agora, já não estarei aqui. Outra pessoa diferente habitará o meu corpo.” (Haruki Murakami em Sputnik, meu Amor)

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Uma das razões por que gosto que B me fotografe, é o registo das várias pessoas que passam por mim. Por vezes sinto-me como se fosse o gato, neste caso a gata, de Schrodinger que ilustra o paradigma quântico. Será que, se ninguém me observa, eu existo nesta realidade? A visão quântica diz-nos que nada é real até ser observado. Sendo a gata de Schrodinger, existo num estado indeterminado que não é vida nem é morte, até que alguém me observe...Nada é real se não é observado!

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E tu, meu querido e amado B, tornas-me real todos os dias...

14.12.10

BIRD LIVES

A agulha elíptica Shure, penetrou nos sulcos algo poeirentos do disco de vinyl, e de imediato, o som do saxalto comprimiu o espaço da sala de estar e espraiou-se como uma onda até nos envolver por completo. Fechei os olhos, e fui de imediato transportada, para aquela noite quente por terras de Andaluzia.

Olhei em volta, e os edifícios em tijolo à vista que confinam a praça parecem guardiões milenários que nos protegem de um qualquer perigo não presente. Acendes uma cigarrilha e lanças-me aquele olhar, enquanto te afundas no cadeirão de verga.

Na periferia da Praça, as árvores fazem sobressair o coreto metálico, iluminado apenas pela luz da lua cheia. As sombras são de um negro puro, enquanto as luzes são de um branco prata, quase ofuscante. Pareceu-me ver uma sombra mais ténue no centro do coreto e faço-te sinal para me seguires. Levantaste agilmente com um sorriso maroto nos lábios, pensando no que eu não penso neste instante, e dás-me a mão distraidamente.

O círculo de luz prateada que envolve o coreto, rivaliza agora com o clarão amarelado que mantém as esplanadas no seu lugar. Ouvia-se um bruá de fundo algo longínquo e sinto as tuas mãos deslizarem pelos meus seios e os teus lábios de fogo no pescoço, naquele sítio que tu tão bem conheces. Fecho os olhos no instante em que começo a ouvir o som serpenteante do sax a emergir bem do centro do coreto. Começou de mansinho, mas aos poucos vai subindo de intensidade e a cadência dos acordes também sobe de ritmo. Sinto a tua respiração ofegante na nuca, o teu corpo quente a querer fundir-se no meu. Não abro os olhos quando me voltas para ti e me beijas. O sax solava agora numa profusão de substituições dementes. Ouço vozes a aconchegarem-me a ti e percebo que já não estamos sozinhos.

Sempre de olhos fechados, colo-me a ti no abraço e sinto o teu sexo sempre duro no desejo de mim. A música daquele instrumento envolve agora tudo e todos na periferia do coreto. Por incrível que pareça, fora do perímetro em que nos encontramos, como se de um círculo mágico se tratasse, ninguém ouve nada. As esplanadas continuam tão surdas como antes, no seu bruá monótono. À nossa volta, as pessoas que nos rodeiam começam a dançar espontaneamente num ritmo alucinante. Sinto a tua mão tocar-me a nudez interior e desejo que também toques o teu solo. À nossa volta sinto o rodopio frenético dos corpos que dançam quase em transe, tal como os teus dedos. O tremor e o calor que me envolve prenunciam um fim, e de facto tudo pára. A música e as pessoas que rodeiam o coreto, agora silencioso. Abro os olhos no espanto dos olhares circundantes. As pessoas entreolham-se como que saídas de um encantamento. Tudo está como antes, só nós, que ouvimos aquela música, é que estamos diferentes, juntos e unidos na comunhão de algo que se começa a esquecer rapidamente, como o acordar dum sonho. O teu olhar brilha na cumplicidade de nós. As pessoas começam a dirigir-se em direcção ás esplanadas de luz amarelada, quando são despertadas do torpor pela menina de cor que olha para o centro do coreto e grita um, Look, Look! Voltamo-nos a tempo de ver um grande pássaro branco a levantar voo e desaparecer na fronteira da luz prateada com o negro da noite.

Ao dirigirmo-nos para a luz amarelada da praça passamos pela menina de cor e reparo que um velho negro se apoia levemente no seu ombro. Vejo o velho saxofone oxidado no chão, ao lado da caixa de lata com alguns euros. Olho para aquela cara enrugada e percebo a cegueira nos olhos brancos que tudo querem ver. Chora silenciosamente. Lembro-me de em menina, na minha ingenuidade, pensar que os cegos não choravam. Sinto-me envergonhada nas lágrimas que começam a encher os meus olhos e agarro-me a ti. Levas-me dali, mas não resisto e olho mais uma vez para trás, para o velho músico negro.

O velho músico olha agora na direcção do coreto, faz um gesto vago e balbucia na voz rouca de noites passadas um, It´s you, Bird motherfucker!

(publicado no 1º Excitações)

9.9.10

SAUDADE DE LAURA

Quando se arruma uma câmara escura, encontramos pedaços esquecidos de nós, quer sejam negativos perdidos, provas de contacto que resvalaram para trás das tinas de revelação, tiras de papel de provas fotográficas, fórmulas de reveladores envelhecidas e manchadas, cassetes de rolos, e papéis vários. Desta vez encontrei um que me chamou a atenção. Tratava-se de uma carta, e fiquei curiosa, até porque já não me lembro se chegou a ser enviada. Foi escrita pelo residente da câmara escura, enquanto eu preparava o texto conjunto que fiz com a Laura, "Por Volta Da Meia Noite". E de repente fiquei com uma saudade louca da Laura.
...
a foto de cima é da autoria do B e a de baixo é da autoria da Laura
...

Carta que encontrei, entalada na base do ampliador...

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Quando a nossa filha nasceu, estava eu a começar a estudar a Respiração Circular com base num livrinho do Trent P. Kynaston. Passava horas na casa de banho com a boca cheia de água a esguichar devagarinho, enquanto inspirava ao mesmo tempo pelo nariz. Abdominais, músculos da bochecha e concentração. No Sax estudava os High Tones (Eugene Rousseau) e as intermináveis escalas que o meu professor insistia em praticar. Tá claro que ele é que tinha razão, mas eu queria era tocar e improvisar com os temas que tocávamos em conjunto do Jazz FakeBook. Ele tocava clarinete e eu sax. Tocávamos standards, todos. Ou tentávamos...Ele como músico profissional, embora estivesse reformado, tocava-os na perfeição. Eu ia no banco de trás....Então quando íamos para o bop e para os temas do Bird, esquece! LáSibemoldó, Lásustenido, Dó,RéMiSolFá, MiSol, em si bemol...reconheces o começo de Quasímodo? E este até nem era dos piores...

Mas o mais giro era quando a pauta tinha um acorde ligeiramente diferente do que é comum tocar ou do que estás habituada a ouvir. Ele tocava certo pela pauta e eu tocava um pouco de ouvido pelo que conhecia de cor dos discos. Claro que dava fífia e tínhamos que voltar atrás...Eu argumentava que soava melhor como eu tocava, mas ele dizia que quando eu estivesse sozinho tocava como quisesse. Na altura até transformei uma das casas de banho do apartamento em que vivíamos num estúdio forrado a painéis acústicos, para poder tocar à noite sem me chatearem.

Das experiências mais potentes que tive a tocar, foi em solo absoluto, improvisando em meditações de grupo, acompanhando quem conduzia a meditação. Da primeira vez deu-me uma branca, depois...conto-te um dia destes!

Resumindo, a nossa filha foi crescendo, a vida mudando e deixei de tocar vai para dois ou três anos. Falta de tempo, outros interesses criativos a ocuparem o espaço junto com a fotografia, a pintura, a escrita, a navegação (sem ser da net...) e o dia só tem 24 horas! Mas o Jazz, ou melhor dizendo, a boa música anda sempre por aqui!

A minha menina começou a gostar de Jazz depois de ir comigo ao Concerto do Charles Lloyd na Aula Magna. Depois foi o Concerto duplo do Joshua Redman e do Ornette Coleman no Coliseu. Um pouco mais forte, mas a conquistar-lhe o ouvido. E depois os míticos Set’s no Seixal Jazz do Paulo Gil. Hoje diz que eu a ensinei a gostar de jazz. É bonito, não é?

Também foste tu que iniciaste o Rainbowman no Jazz ou ele já tinha a chama? Hello Rainbow! O mundo já foi nosso, agora é a vez delas! Talvez seja a maneira de o mundo ficar mais bonito e terno...

Desculpa lá a chamada de atenção, mas tenho bastante consideração por ele, mesmo sem o conhecer! Só pelos posts e pelos comentários que faz no Excitações. À parte o Paulo Coelho (também não gosto), cheira-me que temos bastante em comum... Uma delas é partilharmos a vida com uma mulher que nos preenche na totalidade! Eu não devia dizer isto, mas vocês merecem!

Agora podes começar a ter a tua baixa de tensão. No atelier ouvíamos bastante o álbum Kamakiriad e acho que ainda tenho no meu estúdio uma K7 com esse disco. Era a altura em que praticávamos bastante o Michael Franks a par da Carla Bley e do sempre inesperado Charlie Haden, que conheci em Lisboa, naqueles tempos idos em que o Carlos Paredes lhe ofereceu uma Guitarra Portuguesa, e onde se combinou o disco a duo. Tempos que já não me lembro muito bem, mas que foram tempos de jazz, jazz e jazz. Ou o 25 de Abril não fosse uma improvisação em si bemol...

Quanto ao Livro do Miles, o meu está um pouco melhor, mas com as páginas bastantes amareladas e a cheirar a ácaros por tudo o que é sítio. E o Bird Lives, já leste? E o Chasin’ the Trane? E o ... Deixa lá que eu também não os li todos! Estão aqui na estante esperando a vez para se cumprirem!

A Maria está em pulgas porque não a deixo mexer no teclado, por isso vou ficar por aqui. Mas aproveito só para completar a carta, que Woody Allen é aqui residente! Só não gosto muito da fase Berguiana. É interessante, mas prefiro o Everyone Says I Love You , com o avô nu na fila do pão, do que a mulher fútil que sossega o marido cientista em Interiors (se é que não estou a confundir o título).

Gostamos, gostamos, gostamos! E o Play It again Sam com a cena do perfume a mais, é demais! Aliás o Woody Allen, é demais, sempre! Como nos Vigaristas...Sabes que um amigo meu, esteve há uns anos em NY e jantou no restaurante em que ele estava a tocar? Diz que na vida real é igualzinho aos filmes! Casaco de bombazine, pullover e o ar meio paranóico do costume, para alem do clarinete...New Orleans...

Mas é bonito ir revelando a vossa amizade! É como se a vossa imagem se fosse formando no papel molhado, oscilando para a frente e para trás no fundo da tina de revelação... A luz por enquanto é encarnada e difusa. Qualquer dia acendemos a luz e fixamos a foto. É capaz de lá estarmos todos! A preto e branco, com música de jazz em fundo!

(Esta última frase é da Maria! Não resistiu e teclou!)

beijinhos para ti e para o Rainbow

B e Maria

(A foto do teu sex/sax está linda!)

20.8.10

BELA ADORMECIDA

Pois é, decorreu um ano sem posts. Tenho andado adormecida para os contos e textos que compõem o Excitações. A escrita, essa entidade supramim, se é que a palavra existe, se não, passa a existir agora, continua a puxar-me para a frente na forma do romance escrito à procura de editor. Tomei-lhe o gosto e já vou a meio do próximo, seguimento e complemento do primeiro. Préfigura-se uma trilogia. Mas sinto a falta da excitação da pequena história, em que as idéias são condensadas para uma síntese o mais eficaz possível no domínio da narrativa. No fundo os contos são romances em miniatura, assim como os romances são contos mais desenvolvidos. Não quero fechar o Excitações. Sinto que estou a acordar deste sono letárgico em que tenho vivido este último ano. Ou será que estou a sonhar que estou a acordar?

15.7.09

SOMOS QUEM SOMOS!

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Fazemos Amor
no Divino incesto
da criação caótica.
Somos a génese
a promessa
de não ser
aquilo que somos.
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Somos dois
Somos um
Quem somos?
Somos quem somos!
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Amamos
o caos Divino
na criação incestuosa.
Somos o prazer
de estar e ser.
Somos o beijo
na tempestade
dos sentidos.
Somos o raio
no orgasmo repartido.
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Somos dois
Somos um
Quem somos?
Somos quem somos!
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Divinos na Postura
Profanos no Amor
Heréticos na Vida
Amamos longe a distância
Queremos o intangível
Sonhamos o sonho
Somos Deus
Somos o Diabo
Somos o Amor
.
Somos dois
Somos um
Quem somos?
Somos o que somos!
.
Somos o desejo
a arder
a queimar
a saciar o querer.
Somos um ponto
não temos tempo.
Somos o ponto sem tempo
.
Somos dois
Somos um
Somos o nada
Somos o tudo
Somos o princípio
Somos o fim
Quem somos?
Somos quem somos!
.
Somos o abraço
Somos os corpos
Somos um corpo abraçado
Somos tudo
Somos nada
Quem somos?
.
Tu e Eu
Somos quem somos?
Ou somos
Quem julgamos ser?
.
Somos dois
Somos um
Quem somos?
Somos quem somos!
.
Somos o grito
da carne rasgada
no sangue da vida.
Somos o orgasmo
no altar
da comunhão.
Somos o sexo
erecto e húmido
na paixão de nós.
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Somos dois
Somos um
Quem somos?
Somos quem somos!
.
Somos o Avatar
do Amor silencioso
e da paixão rouca
no grito dos corpos.
Somos o Divino
no beijo perdido.
Somos o Mal
no afago querido.
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Somos tudo
Somos Nós
Quem somos?
Somos quem somos!
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Somos o preto
Somos o branco
Somos a cor
na vida cinzenta
do olhar perdido
no fundo de nós.
Somos a tempestade
Somos o trovão
o vendaval destrutivo
na tranquilidade inócua
das existências.
Somos o tempo passado
Somos o tempo futuro
Somos o tempo sem tempo.
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Apenas somos
quem Somos!

17.6.09

I´M A BLACK MAGIC WOMAN

I’m a Black Magic Woman, cantava a Lila Downs no já indispensável Ipod. Não importava que o convés do barco fosse o local mais improvável para o colocar, mas a ondulação tímida e preguiçosa que nos saudava a isso convidava. Escrevi a frase de rajada, no também já indispensável portátil, sem reparar nos ava que rimavam numa ondulação em simpatia. A costa estrelada, confundia-se com as luzes de fundeio dos veleiros dormitando em segurança na baía de coral. O vento caíra finalmente, e pairávamos na bem-aventurança do sossego merecido, após a tormenta já esquecida. Ainda restava um pouco da adrenalina adquirida, mas seria de pouca duração. Anestesiados pelo também já indispensável Mount Gay, olhávamo-nos como duas crianças triunfantes na aventura proibida. O que estás a escrever, perguntaste. Nada de especial, apenas pairando como se estivesse dentro de uma sopa de letras, recolhendo aqui e ali palavras formadas pelas espirais caóticas do acaso, respondi a custo. Naquele momento até as palavras me custavam a sair. Então e o romance que estavas a escrever?, Já o acabaste? Olhei para B. com olhos de falta de paciência. Eu era a rainha, a amante, a meretriz, a sacerdotisa, a mãe e a mulher que sabia de tudo e de todos. Ele era o rei, o amante querido e desejado, que sabia de tudo que lhe dissesse respeito, passando distraído no resto. É genético, nem sei porque é que ainda me espanto, pensei para comigo. Olhei-te de novo, e repeti a mesma frase das últimas noites. Estou nos finalmentes, falta muito pouco. Encolhi os ombros no gesto reflexo quando me respondeste com um longo AAAAAAA, mais preocupado com o teu copo já vazio, do que com o que faltava no romance. Pensei para comigo, Dava-me jeito encher o espaço que faltava para acabar o texto, como se enche um copo de rum, sempre até à borda, sempre até ao fim. A Lila acabou a canção, tú acabaste o copo de Mont Gay, e eu acabei este texto. De seguida, desnudo-me e mergulho nas águas mornas e escuras do Caribe em direcção ao final do meu romance.

31.10.08

EXCITAÇÕES NA BIBLIOTECA DE BABEL

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Ao princípio não me apercebi que lugar era aquele. Tinha acabado de deslizar para aquele estado de bem-aventurança pós orgasmo, quando a porta do quarto mudou de cor e o espaço que me envolvia transformou-se por completo.A cama com os lençóis de linho branco, todos emaranhados, desapareceu. O roupeiro embutido na parede desapareceu. Olhei para o meu lado e, já sabia que assim seria, B desapareceu também. Só o grande espelho que forrava a parede fronteira à cama tinha ficado, embora o seu brilho agora fosse cinzento metálico. Devia ser para combinar com o tom metálico da porta.
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Olhei-me a ver se continuava eu mesma, e suspirei de alívio. Os seios eram os mesmos, um bocadinho mais erectos do que o costume, a barriga era a que eu conhecia, os pelos púbicos aparados como sempre e os pés, eram os meus pés! Sem dúvida que eu não mudara.
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A medo abri a porta e entrei numa galeria hexagonal com um poço de ventilação no meio, cercado por parapeitos baixíssimos. As paredes estavam forradas por estantes com livros. Olhei para cima e os pisos de galerias idênticas estendiam-se até ao infinito. Olhei para baixo e era o mesmo cenário. Onde estaria? Numa biblioteca, sem dúvida, mas que biblioteca? Não tinha conhecimento de nenhuma assim.Resolvi passar para a galeria seguinte e vi a minha imagem reflectida no espelho do saguão de ligação das galerias. Estava nua, apenas com umas meias pretas e ligueiros, mas sem cinto de ligas. Observei melhor e reparei que os ligueiros estavam presos aos grandes lábios com umas molas pretas. Senti a excitação expandir-se pelo meu corpo nu à medida que caminhava para a próxima galeria hexagonal. Cada passo que dava fazia com que estremecesse de prazer e me arrepiasse toda.No que me pareceu uma eternidade, acabei por chegar à próxima galeria. Era igual à outra, cheia de estantes e livros. Ao acaso puxei uma lombada de cor preta. Voltei-o para ver a capa e quase o deixei cair de incrédula. A capa era igualmente preta, com uma fotografia de uma mulher nua ajeitando as meias pretas com ligueiros. Mas não foi isso que me fez tremer as mãos e quase deixar cair o livro.
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Foi o título do livro, EXCITAÇÕES, em letras brancas e grandes, e em letra mais pequena, Fotografias de B...
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. Devia estar a sonhar! Sem largar o livro decidi passar para outra galeria e só então reparei no bibliotecário que se encontrava à secretária, escondido na penumbra do próximo saguão de ligação. Resolvi perguntar-lhe como se poderia sair dali. Respondeu-me com um sorriso, - Minha querida, não se sai da Biblioteca de Babel, a menos que se tenha encontrado o livro escrito por nós. Como a Biblioteca é interminável, é como encontrar uma agulha num palheiro...!
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. - Mas eu encontrei! Ainda não o escrevi, mas encontrei!, disse quase a chorar de alegria.- A Biblioteca tem todos os livros escritos e por escrever. Se o encontraste, então o teu lugar não é aqui...! A Biblioteca é um lugar de busca...Deixei de o ouvir, no momento em que senti o braço de B a envolver-me a cintura. Na atrapalhação da saída, deixei cair o livro no poço vazio, mas ainda consegui ler a placa branca que se encontrava bem no topo da secretária: - J.L.Borges – Bibliotecário
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29.9.08

MOUNT GAY

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O Dolphin Dance inclinava-se na bolina elegante dos seus cinquenta pés. A costa escarpada da ilha de Bequia aproximava-se velozmente por entre a névoa formada pelas miríades de partículas de água que brincavam ao apanha na rebentação desordenada das ondas. Para trás tinham ficado os Tobago Cays e a Petite Saint Vincent. Para trás tinham ficado igualmente pedaços de todos nós, colados com mar e vento às areias das ilhas desertas, esperando os piratas charmosos da nossa imaginação.
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Atenção ao bordo, gritou o Louis LeClerc da roda de leme de estibordo. Podíamos ver o branco dos olhos das rochas quando avisou com voz decidida, Leme de Ló. As escotas dançaram umas com as outras, a genoa oscilou a princípio, como se ainda não tivesse decidido mudar de bordo, enquanto a vela grande, orgulhosa e vaidosa, com um sacão passou para a amura de bombordo. Com esta manobra, passamos a ver a entrada da baía de Port Elisabeth. Mais um bordo e estávamos de novo em Bequia, para nós a mais querida de todas as ilhas daquela zona das Caraíbas.
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. A noite chegou enquanto preparávamos o jantar a bordo. Era noite de festa e nós estávamos lá para dançar até de madrugada. Era a nossa última noite antes de entregar o barco na baía de Blue Lagoon, em St. Vincent, nosso remoto local de partida, parecia que há muitos séculos atrás.
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. Atracámos o dinghy na amarração do clube de mergulho, e fomos à procura do local da festa. Tinham-nos dito que vinha um músico fabuloso que dava pelo nome de Shadow. A coisa prometia, só faltava saber onde. O Jimmy, natural da ilha, sabia bastante bem onde era a celebração, como viríamos a constatar depois. Mas antes, a caminho do local do ritual dançante, fomos visitando todos os bares, como de fossem estações de uma peregrinação. Em vez da reza do costume, provávamos a Caribe local. E assim fomos subindo a encosta, seguindo o nosso guia casual, até chegarmos ao recinto de jogos de Criquete e Basquetebol. A multidão que ondulava junto ao portão, dizia-nos que era ali. Depois de me porem uma pulseira cheia de hologramas a brilhar, entrei para o recinto já quase cheio. Parecia que estava numa festa de liceu ao ar livre, com a diferença que os alunos eram todos de cor, e só nós e mais um casal de holandeses, a ver pelo escaldão que levavam, é que éramos a dar para o deslavado. Além disso, estavam todos a petiscar frango frito com arroz e feijão, em vez de gelados e pipocas. Onde é que se bebe?, perguntou o LeClerc ao Jimmy.
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Não servem bebidas alcoólicas aqui, só Cocacola, respondeu num sorriso branco pepsodente, para acrescentar, Mas o que o pessoal aqui faz, é ir lá fora comprar uma garrafa de Rum, daquelas de bolso, e depois baptiza a cocacola aqui dentro, discretamente, salientou com um arquear de sobrancelhas multirracial. Olhei para o LeClerc, mas já só lá estava a sombra quádrupla dos projectores.
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Não contive um sorriso quando o vi regressar como se nada fosse. Olhava distraidamente para os polícias que vigiavam o recinto. Do inchaço enorme no bolso dos calções, sobressaía o gargalo de uma garrafa. Comentou que, Já não havia das pequenas, então comprei a do costume, e puxou ligeiramente a garrafa onde se lia em letras douradas, Mount Gay Reserva. Sorriste também, como se fosse a coisa mais natural do mundo e disseste na ocasião, Então vamos lá beber umas cocacolas.
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Já a garrafa ia a meio, quando o Shadow entrou triunfante na sua barba grisalha a pontuar de branco a vestimenta negra. A banda acentuava os riffs de guitarra com a secção de metais, e toda aquela massa de corpos ondulantes vibrava em uníssono. Perdi-te de vista. Navegavas em rumos concêntricos, e ciclicamente vinhas ao meu porto, para te abasteceres de mim e também de Mount Gay.
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. A celebração estava no auge, deixou de haver negros ou brancos no recinto. Havia apenas a música e o mar de corpos que a dançavam. De repente um vento fresco começou a soprar devagarinho, para de seguida se abater sobre nós uma chuvada torrencial, daquelas que encharcam até a alma mais empedernida. Que me lembre, ninguém arredou pé, nem parou de dançar.
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Shadow para finalizar, repetiu em versão extra longa o tema ícone daquela noite, para delírio de todos. A garrafa de Mount Gay foi deitada fora na vergonha de ter ficado vazia, e nós dirigimo-nos cambaleantes para a amarração, onde o dinghy nos esperava pacientemente, para nos levar a uma das estrelas da constelação de Mooring que brilhava por cima de Admiralty Bay. No caminho, descobriste no bolso da camisa ensopada de chuva e suor, o resto de um charro da erva mais mortífera que alguma vez fumáramos, e para acabar o ritual, acendeste-o. Fumaste-o com o LeClerc. Eu já tinha emoções que chegassem e bastava o cheiro para me pôr zonza, e o outro tripulante que nos acompanhava, já estava clinicamente ausente. Caminhava automaticamente, com a ajuda da descida da rampa que nos conduzia à praia, cantarolando baixinho o refrão da última música.
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LeClerc insistia em ser ele a levar o dinghy. Sou quem tem mais tempo de mar, por isso levo eu, dizia com o indicador levantado para acentuar. E eu sou o mais velho, dizias tu não muito convencido. Para piorar a situação apareceram dois tripulantes de um catamaran de charter a pedir-nos boleia para a embarcação. Comecei por dizer que talvez não fosse muito boa ideia, mas os braços abertos do LeClerc desfizeram qualquer dúvida. Ainda hoje penso que o sorriso dele brilhava no escuro. Com os tripulantes do Catamaran a indicar o rumo, foi fácil dar com a embarcação deles. Depois foi por puro acaso que encontrámos a nossa no meio da quantidade de barcos fundeados na baía. Fazias coro com o Louis, ao dizer que, Com um fuminho damos sempre com o barco. E riam-se até se engasgarem, como dois putos contentes e felizes.
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Acostámos na perfeição ao Dolphin Dance, aí o acaso já não teve nada a ver com isso, e acordámos os que tinham ficado a bordo, com as risadas alucinadas de quem não quer fazer barulho. Deu-nos a fome, porque seria?, e fomos comer os restos do jantar. Já não havia cerveja, e quando o drama profundo já se começava a desenhar, eis que surge LeClerc, triunfante com uma garrafa de Mount Gay na mão. Tinha-a guardado para uma emergência, disse no sorriso mais feliz que alguma vez vi.
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No dia seguinte, iniciámos os procedimentos para voltarmos a Portugal. No entanto, acho que ficámos todos em Bequia e continuamos a viver por lá. Regressaram as nossas sombras. Nós ficámos na Terra do Nunca.... .
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(João Pedro, será que respondi à tua pergunta?)

16.9.08

PRAZER EM CONHECER

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A noite era de calor tórrido e abafado. As ventoinhas exibiam as pás difusas, na lentidão do remexer o ar parado. O lobby do hotel, mesmo assim, era um oásis ténue no deserto da noite citadina. O que estava a fazer ali? No meio do Yucatan, numa cidadezinha chamada Valladolid, a lembrar terras de Espanha. Cruzei a perna na impaciência da tua chegada, e fechei os olhos na procura da recordação do teu rosto. Deixares-me sozinha no Parque em frente ao Hotel, com a promessa de voltares ao principio da noite. Tenho que fotografar os Índios que apoiam o Comandante Marcos do Ejército Zapatista de Liberación. Souberam que estávamos aqui, e convidaram-me. É uma oportunidade única.

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E vi-te entrar na camioneta da escola que partiu numa nuvem de poeira, como nos romances. E eu, a personagem feminina, deveria chorar a ver-te partir. Em vez disso fui tomar um banho de imersão bem frio. Não durou muito tempo porque as cucarachas também estavam cheias de calor, e apareceram para se refrescarem. De olhos fechados, imaginando a brisa que me lambia o corpo a intervalos, ouvia o som ritmado das infindáveis canções de mariachis. Abri os olhos, espantada e surpreendida, no momento em que as congas deram lugar a uma voz escondida nas profundezas da mente. cantava, Please allow me to introduce myself / I´m a man of wealth and taste...

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A minha surpresa ainda foi maior, porque à minha frente estava um homem alto, ligeiramente curvado na minha direcção, como se estivesse a fazer uma pequena vénia. Reparei na altura que vestia um fato preto a contrastar com o forro dum vermelho vivo, camisa branca e gravata azul escuro com riscas laranjas, brancas e azul claro. Fiquei presa naquelas riscas hipnóticas e fui despertada pelo fumo acre da cigarrilha cubana.

. Let me please introduce myself / I’m a man of wealth and taste, continuava a canção cada vez mais familiar. Ele sentou-se a meu lado, e num gesto no limite do charmoso, pegou-me delicadamente na mão e simulou o beijo, que embora não tendo existido, (será que não existiu?) teve o condão de me provocar um arrepio que percorreu o braço direito, entrou pelo pescoço e espraiou-se pelo tronco até sair pelo sexo na vibração quase, quase órgásmica. Olhei atónita e confusa para a silhueta em contra luz, que ainda mantinha a minha mão na dele. Senti-lhe os olhos de fogo e tentei descortinar o que haveria dentro deles.

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So if you meet me / Have some courtesy / Have some sympathy, and some taste…, continuava a canção já conhecida, mas não identificada. As congas acentuavam o ritmo e a voz era cada vez mais possessiva, como o olhar que me envolvia e apertava como uma cobra a imobilizar a sua presa. Queria perguntar-lhe o nome, mas não consegui. Em vez disso, vi-te a sorrir. Pensavas em mim e soube isso naquela altura, naquele instante em que senti, ou pensei ouvir uma gargalhada rouca a ecoar bem no fundo de mim mesma. Olhei de novo para o homem que tinha a meu lado, traçara a perna e pusera o braço a contornar-me os ombros nus. Senti um frémito de gozo antecipado e num impulso bem consciente, não posso mentir, desapertei o corpete, botão a botão, e mostrei-lhe os seios sequiosos de luz. Ainda hoje não sei porque o fiz, mas a vontade de abrir o corpete e mostrá-los foi avassaladora.

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Tell me baby, whats my name / Tell me honey, can ya guess my name / Tell me baby, whats my name / I tell you one time, youre to blame / Ooo, Who…., finalizava Mick Jagger. O homem sorriu (será que sorriu?), na minha direcção, levantou-se e pronunciou as únicas palavras de que me lembro, Señorita..., e cruzou a porta do hotel no instante em que entraste. As tuas palavras, quando me viste, assim exposta e meio atordoada, ficaram para sempre gravadas na minha memória, Vinha com uma saudade louca de te beijar os seios... como é que adivinhaste?

Nunca tive a coragem de te dizer. Até hoje!

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(texto publicado no Excitações Primeiro Set)

10.7.08

ROUND MIDNIGHT – POR VOLTA DA MEIA NOITE

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O chapéu de coco fora pousado delicadamente no tapete felpudo. Era preto, na ausência do vermelho em terras de Espanha, contrastando com o creme, a tender para o laranja fim de tarde, do tapete. O chapéu dava-lhe aquele ar de vaudeville travesso que tanto gostava e praticava. Depois, pegou nas meias pretas, enrolou-as cuidadosamente, para de seguida as desdobrar até ao princípio das coxas. Estavam bem justas e contrastavam com a pele rosada do seu corpo nu. Olhou-se de novo ao espelho e franziu ligeiramente a testa na interrogação. Falta qualquer coisa, pensou. Olhou à sua volta e a pequena ruga transformou-se em sorriso. Pegou no colar de pérolas e vestiu-se com ele. Olhou decididamente para a imagem reflectida no espelho, e soube-se bela.
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A objectiva captava um brilho, um glow, que ela não sabia que tinha. Pelo chão, ao lado da carpete felpuda, brilhava uma garrafa de Quinta do Infantado, grandes copos vermelhos, objectivas, lentes, filtros e um ar de doce luxúria. Miles Davis passeava pela sala em sons lânguidos e intimistas, depois vinha Coltrane, o impressionista do jazz, colorindo o ambiente num serpentear de notas, respirações, intenções... E ele, à volta dela, fotografando-a... Ela namorava a objectiva, sentia no corpo nu o calor e o som dos olhares dele. Do fundo da sala, vinha o som de uma voz de mulher. Estava deitada no chão, os longos cabelos negros espalhados nas amplas almofadas vermelhas. Trocava palavras, olhares e pequenas carícias com o homem sentado a seu lado, fumando uma cigarrilha no ar ausente de quem está preste a dizer algo de seminal.
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Olhou para a companheira de longa data e sorriu. Depois, elevou o olhar e abarcou com ele o resto da sala e todos os que lá se encontravam. À sua frente, afundado no cadeirão de pele desbotada, Lawrence Ferlinguetti cofiava a longa barba hirsuta e ia compondo versos para a mulher que atravessa a Piazza “Bocca della Verita”. No canto oposto ao autismo fotográfico de nudez luxuriante, Bill Evans, acompanhado por um Tony Wiliams não muito confortável nas congas, improvisava no piano, estruturas modais, que flirtavam com os acordes de Red Garland que serviam de base aos solos de Miles e Coltrane que enchiam a sala. O som da aparelhagem que revivia o mítico quinteto tinha uma intensidade intimista, o suficiente para deixar sobressair o piano e as congas, sem no entanto abafar a calorosa discussão que ocupava o canto restante. À volta de uma mesa rectangular, o clássico arranjo de dois sofás pequenos e um grande. Num dos sofás pequenos, de costas para os músicos, Timothy Leary depois de ter lambido um selo colorido, impregnado de ácido lisérgico, repetia incessantemente, como se fosse um mantra, “Turn on, Tune in, Drop out”, viajando para outros debates e discussões. No sofá grandalhão, os quase inseparáveis William Burroughs e Allen Ginsberg opinavam sobre o título a dar ao último romance do primeiro. Interzone, acentuava o homem do inseparável chapéu no olhar por detrás da morfina, Naked Lunch, contrapunha o sempre jovem de óculos, do cimo da fama do seu poema épico “Howl”. No sofá restante, um jovem Tom Waitts, com olhar maravilhado, congeminava uma ópera bufa. Veio-lhe à cabeça o nome de Black Rider.
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Jack Kerouac, aclarou a garganta, mas de nada serviu, ninguém o ouvia. Então, decidido a chamar a atenção para o que queria fazer, levantou-se no salto ágil. Pegou no sax alto abandonado nas almofadas coloridas e soprou com força o acorde inicial do Round Midnight, completamente fora de tom. Parecia um momento congelado no tempo. Todos os personagens ficaram parados no eco a desfazer-se, com excepção do par cativo no buraco negro dos olhares. Também foi para eles que Jack recitou o seu último Aiku, acabado de compor. Birds singing / in the dark / -Rainy Dawn.
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Voltou a sentar-se, satisfeito com a receptividade do grupo ao poema e voltando-se para a companheira que lhe estendia um copo de Jack Daniels, perguntou-lhe, Gostas, Eddie? Achas que tem Beat? E sem esperar pela resposta centrou o olhar no corpo nu difuso, para lá da cortina branca de luz e poeira suspensa que entrava pela porta da pequena varanda. O brilho das pérolas brancas misturava-se com o brilho dos pequenos grão de poeira que flutuavam no ar. Os olhares feito imagens, misturavam-se com os sons lânguidos do trompete...
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. Texto escrito em conjunto por Excitações & Laura’sex life
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. ( Reprise do Texto publicado no Excitações - Primeiro Set )
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18.6.08

AGFAPAN QUATROCENTOS

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Pelo brilho do olhar e pelo sorriso a roçar o infantil, ela soube-o feliz quando chegou a casa, trazido pelos últimos raios de luz que teimavam em prolongar o dia, naquela hora suspensa entre dois mundos. Sorriu na expectativa do beijo distraído com que ele a presenteou, servindo de introdução ao discurso excitado e quase ininteligível do que lhe tinha acontecido. Como costumava fazer nessas situações, olhou-o bem nos olhos, beijando-o longamente, até o distrair dele próprio e serem, uma vez mais, aquele todo que os mantinha ainda na linha de partida, após tantos anos de vida em comum.
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Levou um dedo aos lábios em sinal de silêncio, sentou-o confortavelmente no velho sofá vermelho e recolheu-se na cozinha em busca da garrafa de tinto e dos copos de cristal. Para ocasiões especiais, vinho e copos igualmente especiais, pensou no sorriso que lhe aflorou aos olhos, a ponto de quase os cerrar de alegria. Ao fim de todos aqueles anos, ainda sentia as descobertas e triunfos dele como se fossem também dela. Seria que com ele acontecia o mesmo? Gostava de pensar que sim, mas sabia que ele era bem diferente. E ainda bem, pensou para consigo enquanto voltava à sala.
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Então diz lá o que te aconteceu, para chegares a casa como um puto, que conseguiu o último cromo da colecção dos jogadores da bola? E recostou-se para o ouvir, deliciada, enquanto aflorava o cálice de vinho, como se fosse uma preciosidade. Conta lá, repetiu, Mas conta devagarinho, bem devagarinho para eu saborear com prazer.
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Ele sorriu, arqueou as sobrancelhas duas vezes, naquele gesto tão característico dele, e começou por dizer. Lembras-te do meu avô artista gráfico? Aquele que também era fotógrafo e tinha uma litografia? Lembras-te de eu te dizer que quando ele morreu, a litografia estava nas ruas da amargura e os credores levaram tudo, ficando apenas os poucos desenhos originais e álbuns de fotos que ele tinha em casa. Tudo o que estava no local de trabalho, e era quase tudo o que ele tinha feito ao longo da vida, acabou por desaparecer na voragem dos credores. Venderam o que puderam e destruíram tudo o que não tinha valor comercial. Bom, quase tudo, como acabei por descobrir hoje, num golpe de acaso e sorte.
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Descobriste coisas do teu avô? Aonde? Perguntou-lhe cheia de curiosidade. Não vais acreditar, mas foi num leilão, ali para os lados da rua do Loreto, ao pé do Largo do Camões. Ainda existe uma casa muito antiga, que vende jóias e relógios, mas que dantes também era uma Casa de Penhores, como lhe chamavam. As pessoas quando estavam aflitas de dinheiro, empenhavam jóias, relógios, máquinas fotográficas e todo o tipo de coisas que dessem dinheiro. Quando se recompunham financeiramente, iam lá buscar o que tinham vendido e pagavam um juro correspondente. Foste a um leilão numa casa de penhores? Perguntou cada vez mais cheia de curiosidade. Fui, fui, estava interessado numa antigas Hasselblade que iam para venda, juntamente com uma série de tralha bem antiga que ainda estava nos armazéns da loja. Estavam a leiloar tudo. Os donos já estão bem velhos, os filhos estão-se a borrifar para o negócio e segundo consta, têm uma oferta de um banco para fazerem ali mais uma agência. Vi o anúncio e decidi lá ir dar uma vista de olhos.
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Conta mais, conta mais, pediu ela sofregamente, com a curiosidade quase a matar o gato. Ele sorveu deliciado mais um gole de tinto, encheu o peito na pantomima e contou que, Embora eu só estivesse ali para ver se conseguia adquirir uma Hasselblade quinhentos cê, o que acabei por conseguir, uma seis seis com carregador duplo e objectiva Carl Zeiss de oitenta milímetros com dois ponto oito de abertura, despertou-me igualmente a curiosidade, quando anunciaram a venda de um baú fechado a cadeado. Ninguém sabia o que continha, anunciaram divertidos, e só acrescentaram que tinha pertencido a um litógrafo da velha guarda. Quando desvendaram o nome do artista, não acreditei, até perguntei para repetirem, tão incrédulo estava. E depois, desembucha!, quase que gritou. Agora estava excitadíssima para saber o desfecho. E depois?, repetiu. E depois? Olha, disse-lhe com um sorriso tranquilizador, Depois, felizmente que ninguém que ali estava conhecia o nome do meu avô, e acabei por licitar o baú por um preço decente. Está aí! Ainda não o abri, estou mortinho por isso, mas quero partilhar esse momento contigo. Ela levantou-se e beijou-o no meio do desfoque molhado que lhe inundou o espírito.
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Olhou para o velho baú de madeira forrada a cartão pintado, conservando ainda os cantos em latão quase preto e os dois fechos com cadeados. Tens a chave?, perguntou por perguntar, embora já soubesse a resposta. A chave?, Claro que tenho a chave, e mostrou-lhe uma chave inglesa pronta a partir os fechos do baú. Foi com um ruído seco que décadas de esquecimento se evaporaram, prontas a revelar um passado já a começar a ficar bem distante.
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O interior do baú, para além do cheiro característico das coisas velhas e antigas, estava cheio de antigos envelopes de papel fotográfico contendo as mais variadas coisas, desde fotos de família a fotos de estúdio, desde desenhos a lápis de cores, uma das especialidades do avô dele, a aguarelas de paisagens e ilustrações variadas. Bem lá no fundo, ainda tinha alguns utensílios de fotografia já muito em desuso, como dois tanques de revelação em baquelite, filtros e condensadores para um qualquer ampliador, lentes antigas em latão, parafusos roscados vários, latas cinzentas intactas de revelador em pó Promicrol e uma lata redonda de película Agfa a preto e branco, formato trinta e cinco milímetros e quatrocentos Asa, ainda por abrir.
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Sorriu quando o ouviu dizer, que valia a pena experimentar aquele rolo e aqueles reveladores. Ela sabia que ele queria experimentá-los nela, e perguntou se não ia ficar tudo manchado devido à idade que tinham. Respondeu-lhe que era isso mesmo que pretendia, fotografá-la hoje com o material do passado. E na excitação da antecipação, correu para a câmara escura com a caixa de metal. Ainda o ouviu dizer, Lembras-te daquela caixa cheia de cassetes de rolos Agfa vazios, que andei a guardar todos estes anos? Até parece que estava a adivinhar, São os melhores para recarregar com filme virgem.
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Quando ele voltou, com a velha Nikon Éfedois e o mais que antigo flash SunPak montado no tripé com sombrinha, já ela estava desnuda no sofá vermelho de tantas recordações. Como é que sabias? Começou por perguntar, mas desistiu assim que a sentiu no limbo da sua excitação crescente. Como sempre fazia quando a fotografava, pôs o Cd do Coltrane a tocar baladas, e dançaram até à exaustão, coreografias exóticas na cumplicidade dos olhares.
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Por fim, não resistindo ao chamamento da novidade, correu de novo para a câmara escura, a fim de preparar o Promicrol para revelar os rolos. Ela, cansada e feliz, enroscou-se no velho sofá vermelho e adormeceu, na certeza do despertar no sorriso dele. Sabia que ele não ia dormir, já o conhecia o suficiente para saber que só iria ter com ela, quando tivesse revelado os negativos e terminado as provas de contacto.
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Acordou naquele estado em que não se tem consciência do tempo, do espaço e até de nós próprios. Sentia-se mais uma impressão de ser, uma promessa de futuro, do que estar no instante presente. E assim acordou, com o sorriso dele, perplexo e interrogativo ao mesmo tempo, como que a querer dizer-lhe, Queres ver isto? È no mínimo assustador. As fotos não estão muito manchadas, mas a tua imagem está um pouco diferente. Parece que a camada sensível não captou tudo, ouviu-o dizer numa voz mais rouca do que o costume.
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Tirou a cabeça debaixo do cobertor e viu-lhe o olhar surpreso no rosto jovem de cabelos compridos. Com um gesto rápido, ele levantou o cobertor que a cobria e fê-lo voar, até ela ficar novamente nua perante ele. Estás igual às fotos, mas as fotos não estão iguais a ti, gaguejou confuso. Os teus seios estão mais pequenos, quase não tens cabelos púbicos e estás com um corpo de adolescente. O que é que te aconteceu? Isso pergunto eu, respondeu-lhe ela de rajada. Já olhaste para ti? Com os cabelos compridos à anos sessenta e barba quase imberbe? Olha para ti, disse não muito convicta, enquanto acariciava o corpo e o sentia mais jovem, rijo e cheio de promessas. Passou a mão pelo rosto e sentiu-o igualmente mais liso. Levantou-se de rompante e procurou o espelho da sala. Não estava lá, e a sala estava ligeiramente diferente. Só o velho sofá vermelho estava igual, bem, igual não estava, estava mais novo. Era isso, concluiu bem depressa, Tudo estava mais novo. Olhou para ele e suspirou, ou melhor, quase que implorou. O que é que nos aconteceu? Ele, acariciando a novidade dos cabelos compridos, começou por dizer, Não sei, não sei. Fui para a câmara escura fazer o revelador e de seguida pus-me a revelar os rolos. Quando acabei de os lavar e fui ver o que tinha saído, foi com espanto que constatei, mesmo no negativo, que o corpo que tinha fotografado era de uma adolescente. Até pareciam aqueles trabalhos do David Hamilton com fotos eróticas de adolescentes nuas. Confesso que fiquei baralhado e igualmente bastante excitado. Corri para te dizer isto mesmo, até que te vi. Estás linda, desejável, mas és uma criança. Que é que nos aconteceu?
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Vai buscar a caixa metálica do rolo, parece-me que vi qualquer coisa escrita nele, disse-lhe com nervosismo. Deve ter qualquer coisa a ver com tudo isto, acrescentou um pouco insegura. Era mais um palpite do que qualquer réstia de certeza. Enquanto ele foi buscar a caixa, olhou em redor e pareceu-lhe que estava em casa da mãe. Até a micro aparelhagem de Cd tinha desaparecido e em seu lugar brilhava agora uma daquelas telefonias enormes, com um mostrador cheio de números, botões nos lados e várias teclas ao meio. Quando se aproximou para a pôr a trabalhar, ele chegou com a caixa metálica. Na parte de cima dizia simplesmente, AgfaPan Quatrocentos, dez metros. Na parte de baixo, uma tira creme impressa a letras vermelhas dizia, Prazo de Validade - Abril de Mil Novecentos e Setenta e Quatro. Olharam um para o outro, na negativa incrédula.
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Lá fora, um eléctrico chiou na curva apertada do Quartel do Carmo. Pela janela da varanda ela viu de relance o chafariz iluminado, projectando sombras variadas no empedrado. O silêncio voltou ao Largo novamente deserto. Olhou de novo para ele e completou o gesto suspenso, ligando a telefonia. Eram quase onze da noite, Paulo de Carvalho cantava, E Depois do Adeus.
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12.6.08

31.5.08

OLHOS TRISTES

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Chegou a casa decidido a senti-la mais intimamente do que era costume. Ligou a aparelhagem, procurou o cd de Tony Scott, “Music for Yoga Meditation” e pô-lo a tocar ao mesmo tempo que punha os auscultadores. Sentou-se em posição confortável, descansou os braços nas pernas e fechou os olhos. Os sons da cítara, aliados aos do clarinete, transportaram-no para aquela zona conhecida, a que chamava o plano da consciência criadora.
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Aproveitou o primeiro tema, “Prahna”, para a procurar fora das ilusões coloridas da mente vigilante. Deixou as vagas de cores esfumarem-se como nuvens no céu, até desaparecerem no vazio que o começava a preencher. Não ousou perguntar, Onde estás?, e deixou-se transportar nas vibrações harmónicas.
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Encontrou-a no começo do segundo tema,”Shiva”. A princípio, eram apenas uns grandes olhos tristes que pairavam no vazio, sem cabeça ou corpo aparente. Lentamente, observou como a cabeça se formava a partir dum ponto azul, a brilhar na base do pescoço. O corpo tomou forma instantaneamente, não uma forma física comum, mas sim uma forma de luz esbranquiçada. Conseguia distinguir os braços ou o que lhe parecia serem os braços, e decidiu agir. Abriu os seus próprios braços e com um impulso, elevou-se até ela e colou-se ao seu corpo de luz. Ela copiou a sua posição e juntos rodopiaram no vazio consciente.
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Resistiu à tentação de percorrer os vórtices dela, um a um, e apenas observou o vórtice azul que vibrava na base do pescoço. Estava tingido de púrpura e emanava filamentos em direcção aos braços. Sem lhe tocar e usando de imagens pensamento, devolveu a cor azul cyan ao vórtice e eliminou os filamentos. De seguida estendeu os ténues raios azuis pelos ombros, braços e mãos, até os alinhar convergentemente. A imagem que se formou, era composta por várias crianças e alguns adultos. Intuiu a manifestação do querer presente e sem tomar qualquer atitude, afinal estava ali apenas para a sentir, impulsionou-a para cima com força.
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Ela atravessou as últimas notas do terceiro tema, “Samadhi”, como se de nuvens se tratasse. Parou na luz dourada, ao mesmo tempo que a vibração rouca da palavra OM do quarto tema, “Hare Krishna”, a inundava e tingia de energia consciente. Afastou-se para a observar de longe. Os olhos tristes estavam serenos e fechados no sorriso de paz finalmente que a envolvia.
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Lentamente, tomou consciência de outros sons na periferia da atenção, e fez um esforço para retomar o movimento físico ao abrir os olhos. Como sempre lhe acontecia, sentia-se a voltar de muito longe, talvez do local onde os sonhos se transmutam na realidade intuída e nem sempre vivida.
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Levantou-se e desligou a música. O fim de tarde, entrava pela janela aberta, com as primeiras luzes acesas. O cão ladrou na expectativa de um passeio até ao parque. Olhou o silêncio à sua volta, opaco e espesso como o vinho tinto novo. Fez uma festa na cabeça do cão, e com passo decidido, foi abrir uma garrafa de Valado Tinto, pois então!
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21.5.08

PAR4

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Ao cruzar o portão de ferro da Quinta, automaticamente olhou para o lado esquerdo, na direcção do driving range, para medir a visibilidade e notou que se começava a formar uma neblina que esbranquiçava a parte mais afastada do campo. Acelerou na rampa e parou em frente à casa do clube. Estava tudo fechado e não se via vivalma.
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Ao tirar do carro o saco com os ferros foi com satisfação que colocou a pequena gabardina a protegê-los. Ligou o motor eléctrico do carrinho e dirigiu-se para o primeiro buraco.
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A neblina começava a ficar mais espessa mas por enquanto a visibilidade ainda era boa. Do ponto de saída, via nitidamente o lago em frente e o green do primeiro buraco já um pouco branqueado, mas ainda visível. Escolheu uma bola Spalding Pró II de cor laranja, para uma melhor visualização da trajectória, colocou-a no tee com um cuidado já ritual e colocou-se em posição. Olhou fixamente o ponto para onde queria que a bola fosse e de seguida imaginou a trajectória desde a pancada até ao green, passando por cima do lago. O lago já há muito que tinha deixado de ser um problema para ele, embora tenha pago um tributo bem elevado em bolas que lá foram parar, mas agora era um mero obstáculo a ultrapassar. Olhou uma última vez para a bandeira do primeiro buraco e fixou o olhar na bola, ensaiando o swing com um movimento bem lento. Pelo som grave do batimento percebeu logo que era uma boa pancada, enquanto o final do swing conduzia o olhar na direcção da bola que cruzava o lago em direcção à margem oposta. Em cheio no green, com um bocado de sorte ainda faço um birdie, pensou para consigo enquanto atravessava a ponte de madeira. O silêncio que o envolvia, fazia-o sentir-se especial e privilegiado, por estar naquele sítio e àquela hora, fazendo uma das coisas que lhe dava mais prazer. Sentia-se o rei do mundo naquele momento.
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Assim que viu a bola no meio do círculo relvado, voltou à realidade, e começou a estudar a melhor maneira de colocar a bola no buraco só com uma tacada. Agachou-se como de costume para avaliar a rugosidade e o nível do relvado. Um ligeiro efeito para contrariar o declive deve bastar, pensou. Dirigiu-se à bandeira e retirou-a do buraco, depositando-a de seguida na orla do green, reparando que a neblina estava a aumentar. Já não distinguia o tee de saída do primeiro buraco, a visibilidade estendia-se agora até à margem mais afastada do lago. Apressando o passo, sacou o putter, e ensaiou lentamente o movimento, ao mesmo tempo que começava a entoar um refrão duma canção como se fosse um mantra. Não sabia como tinha começado a fazer tal coisa, mas agora era tão natural em si como respirar. Entoou uma vez mais o refrão e bateu com decisão uma pancada quase perfeita. A bola, depois de percorrer um arco, passou a escassos centímetros do buraco, parando a cerca de um palmo de distância. Porra, é preciso ter azar, disse para consigo, enquanto metia a bola displicentemente no buraco com uma pancada leve e seca. Voltou a colocar a bandeira no seu lugar, e dirigiu-se ao buraco dois olhando para trás na direcção do lago. A visibilidade estava a diminuir, já só conseguia distinguir metade do lago.
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O buraco dois era um Par 4, e gostava cada vez mais dele, embora a princípio não fosse assim. Parecia fácil, era uma linha recta, e no entanto as bolas tinham tendência para fazerem uma deriva para a direita em direcção ao outro lago e quando tentava corrigir a deriva, era para a esquerda que ia, para o meio das árvores donde era muito difícil tirá-la. Como em tudo era uma questão de prática e agora, normalmente colocava a bola no eixo, apenas com um deslocamento mínimo.
. Olhou na direcção do farway, e lá em baixo só viu névoa, embora conseguisse distinguir o vulto do green que estava mais acima, enquadrado pela barreira de árvores bastante altas. Uma vez mais, imaginou a trajectória da bola enquanto preparava a pancada, fixou o ponto onde queria que ela caísse e iniciou o swing. Pelo som da pancada ficou a saber que não tinha batido bem, e ao olhar para a bola que se afastava em direcção à parede branca de névoa, percebeu que a trajectória torcia para a direita numa longa curva em direcção ao lago. Quando deixou de ver o ponto laranja que se afastava rapidamente, calculou mentalmente o ponto de impacto e concluiu que não tinha chegado ao lago. Guardou o taco no carrinho e começou a descer a rampa que levava ao farway, embrenhando-se lentamente na neblina que começava a envolver todo o campo.
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Bonito, não vejo um palmo à frente do nariz, ainda me arrisco a ir parar dentro do lago. E onde é que está o raio da bola? Pousou o carrinho e começou a contar os passos que dava numa direcção, depois parava e afastava-se na perpendicular três passos e voltava atrás o mesmo número de passos inicial. Assim ia fazendo um varrimento do terreno em zigue-zague, tendo o carrinho como ponto de partida. Quando ia iniciar a quarta viragem, o olhar foi atraído para uma mancha alaranjada à sua direita. Deu dois passos e exclamou com júbilo, Gotcha, Cockroach! O que no jargão pessoal que usava significava simplesmente, apanhei-te! No entanto preferia usar a frase emblemática do gato do Fat Freddy da banda desenhada dos Freack Brothers. Olhou na direcção do carrinho e ainda conseguiu ver o seu vulto, de seguida despiu o blusão e marcou o sítio. Quando voltou com o ferro número sete na mão, tremia ligeiramente e apanhou rapidamente o blusão para se aquecer. No entusiasmo da situação esquecera-se que estava bastante frio, Tá um briol que faz favor..., pensou para consigo, E eu aqui perdido neste nevoeiro a tentar acertar num buraco que nem se vê a bandeira. Olhou para a mancha escura mais acima do ponto onde se encontrava e concluiu que seriam as árvores que rodeavam o green. Era para ali que tinha que bater a bola, bastava-lhe fechar os olhos e imaginar o local, já que o conhecia tão bem. Vá lá, tive sorte, a bola caiu em cima de umas raízes e está um pouco elevada em relação à relva, mesmo a pedir uma pancada.
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Preparou o swing, fez uma curta pausa e quando ia iniciar o movimento descendente, pareceu-lhe ouvir um clamor, como se umas dezenas de vozes gritassem ou cantassem em uníssono. Parou e olhou em volta, mas o silêncio que o envolvia fê-lo franzir a testa. Que raio? pensou, enquanto se posicionava outra vez para bater a bola. Antes de iniciar de novo o swing, fechou os olhos e concentrou-se nos sons à sua volta, mas só distinguia o vento que soprava leve. No preciso momento em que a ponta do ferro lhe tocou as costas antes de começar o swing, explodiu-lhe de novo na cabeça o clamor de muitas vozes. Ficou parado e quieto com o movimento suspenso na interrogação e o coração a bater mais rápido. Lembrou-se dos tempos em que cantavam a Internacional em altos gritos, levados pelo entusiasmo da revolução, mas o som que ouvira não lhe parecia de júbilo mas sim de aflição, e também não era a Internacional, disso tinha a certeza. Mas agora a situação era diferente, parecia-lhe que o som que ouvira não era exterior a si, mas interior. Surgira-lhe algures na zona por trás dos ouvidos e fora acompanhado por um desconforto na zona do estômago, muito parecido com os engulhos que experimentava por vezes aquando de recordações induzidas por uma música específica. Agora ouço vozes, costumava ser música ou um ou outro pensamento obsessivo. Bom, com vozes ou não, vamos lá bater a bola porque já estou completamente encharcado com toda esta humidade, disse para consigo. Mas desta vez não chegou a preparar o movimento, porque no preciso momento em que acabou o pensamento, outro se formou bem no centro da cabeça e dizia, Olha para nós. O pensamento ficou uns instantes a pairar e desapareceu. Começou a não achar graça nenhuma a tudo o que lhe estava a acontecer. Olha para nós? nós quem? O ambiente em que se encontrava, sozinho e em silêncio no meio daquele limbo esbranquiçado, era propício a histórias de espíritos, mas ele não acreditava em nada disso, era um céptico empedernido e cultivava essa faceta com muito carinho. No entanto, naquele instante e naquele lugar branco, quase que suspenso no vazio, não conseguiu evitar um calafrio, e não era de frio mas sim de desconforto perante algo do qual não fazia a mais pequena ideia. Semicerrou os olhos e olhou à sua volta lentamente, perscrutando as sombras e procurando vultos ou padrões para lá da neblina. Está aí alguém? Gritou, mais para ganhar confiança do que para obter qualquer resposta. Sabia que não ia ter resposta alguma e pensou que se alguém lhe respondesse, apanhava um valente susto. Olha para nós? Devo estar a enlouquecer, finalmente.
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Sentiu uma ligeira brisa a roçar-lhe a face no preciso momento em que outro pensamento se começou a formar. Desta vez a sensação era agradável e dizia apenas, Para baixo. O que queria aquilo dizer? Para baixo? interrogou-se de novo, para baixo o quê? Olha para nós? Para baixo? Seria isso? E instintivamente olhou para baixo na direcção dos pés e da bola laranja em cima das raízes.
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Não achou nada de estranho nos pés, aparte estarem um pouco sujos de lama, a bola continuava em cima das raízes, a relva envolvente era como sempre fora, verde e macia. Olhou mais de perto para a bola e a visão desfocou ligeiramente, embora lhe parecesse ver um brilho fugaz junto às raízes. Os óculos, precisava deles para ver mais ao pé, onde estariam? Na porra do carro, pensou. Automaticamente juntou o indicador e o polegar dobrado de forma a deixar apenas uma pequena abertura por onde espreitar, assim conseguia ver a imagem focada e nítida através do diafragma improvisado. Era um truque que usava quando não tinha óculos por perto e também pessoas, normalmente ficavam a olhar para ele com aquele ar desconfiado e estúpido, típico de quem não entende o que se está a passar.
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Assim que espreitou pelo buraco dos dedos, a respiração parou momentaneamente, como que para não perturbar o que estava observando. As raízes não eram raízes, mas sim pequenas hastes metálicas que sustentavam a bola alaranjada cerca de um centímetro acima da relva, e reluziam com um brilho metálico e molhado. Na ponta abriam e formavam um círculo que estava em contacto com a relva. Olhou melhor e contou sete varões que saíam da superfície da bola. A superfície alaranjada era na realidade bem lisa, sem qualquer concavidade típica das bolas de golfe actuais, e também aparentava ser de origem metálica, embora não conseguisse distinguir qualquer detalhe ou relevo, apenas uma luminosidade baça que emanava da sua superfície. Olhou ao redor e não viu nada escrito, nem Spalding, nem 1 PRO II. Definitivamente não era a sua bola de golfe, nem tão-pouco era uma bola de golfe. Recusou-se a pensar o óbvio e não resistiu a tocar-lhe muito ao de leve. Sabia que era uma imprudência enorme tocar naquele objecto, mas não resistiu.
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No momento em que o dedo tocou na superfície da bola alaranjada, todo o seu ser foi sacudido por uma onda de prazer bastante agradável, e quando começou a esboçar um sorriso, o interior da cabeça encheu-se de novo do coro de vozes em uníssono, agora expressando júbilo e contentamento, em contraste com a angústia que sentira momentos antes. Existem seres dentro desta bola que de uma maneira qualquer comunicam comigo, mas devem ser minúsculos. O coro de vozes parece ser de umas boas dezenas de seres, pensou para consigo. Franziu mais o olho na esperança de visualizar algum detalhe na superfície da bola, uma porta ou janela, mas nada, a superfície era bem lisa. Aproximou de novo o dedo e ao tocar a bola sentiu a sensação agradável ao mesmo tempo que uma ideia nova se formava bem no centro geométrico da sua cabeça, Obrigado. Desta vez o pensamento tinha cor, e a cor era de um dourado ofuscante, pelo menos era a sensação que tinha. Sentiu a superfície da bola a começar a vibrar e instintivamente tirou a mão. A cor laranja começou a tender para o lilás e a bola começou a elevar-se do solo até ficar ao nível dos olhos. Os pés de apoio ou hastes, as famosas raízes, começaram a recolher até não ficar vestígio algum delas. A bola metálica afastou-se com um movimento lento, parando depois abruptamente. Ele aproximou-se e a bola afastou-se de novo, parando mais à frente. Queres que eu te siga, não é? E começou a segui-la assim que se moveu.
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A névoa continuava bem espessa e deu uns poucos de passos hesitantes e cautelosos até que a bola parou e começou a descer em direcção ao chão. Seguiu-a com o olhar e para seu espanto viu outra bola alaranjada na relva molhada, bem junto aos seus pés. Será a minha bola ou será outra coisa igual a esta? Endireitou-se e no momento em que olhou de frente para a bola, agora de cor azulada, uma luz branca encheu-lhe o campo de visão enquanto a palavra Adeus piscou por uma fracção de segundo no limiar do consciente e desvaneceu-se no preciso instante em que a bola se desmaterializou.
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Olhou para a bola alaranjada e sem saber porquê, ajoelhou-se para ver se era a sua bola, Spalding 1 Pro II, naquele que passaria a ser um gesto intuitivo e compulsivo que passaria a fazer, fosse num simples treino ou num torneio, sempre que encontrava a bola que julgava ser a sua, e sempre se interrogaria do porquê de tal acto. Após verificar que era a sua bola, vislumbrou o green através da neblina que começava a ficar menos espessa, concentrou aquele momento no movimento circular que bateu a bola em direcção ao monte verde que ficava a seguir à mancha de areia. Em cheio no green, com um bocado de sorte ainda faço um birdie...
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