19.12.11
CALOR ANIMAL
21.2.11
O SENHOR ANÓNIMUS SÁIDE
Levantou-se da cadeira e foi com um certo ar de enfado que abriu a porta ao rapaz da Pizza Na Hora. Nem o sorriso meio comercial com que foi presenteado enquanto recebia a enorme caixa tamanho XL o afectou. E foi com agrado que fechou a porta e se dirigiu para o escritório, bastante desarrumado até para o seu gosto. Nos últimos tempos já não saía muito de casa e o escritório era o local onde passava a maior parte do tempo.
Partiu a Pizza em fatias estreitas e pequenas, empilhou-as numa travessa e dirigiu-se para a mesa do computador. Era uma mesa espartana que contrastava com o resto do espaço. No centro, apenas pontuava um computador portátil e respectivo rato. Na ponta, um candeeiro de halogéneo iluminava o resto da mesa com uma luz branca que se misturava com a luz ténue do ecrã aceso.
Matraqueou o teclado na certeza de um qualquer endereço electrónico e recostou-se saboreando uma fatia de pizza enquanto a página se resolvia na janela do portátil. Era um blog que não conhecia, virgem de si e dos seus comentários. Sorriu na antecipação do prazer e comeu outra fatia, retardando o momento sempre fascinante em que começava a percorrer os postes até encontrar um que lhe merecesse um comentário. Quando isso aconteceu, fechou os olhos como que a permitir que a inspiração o iluminasse e de seguida começou a escrever febrilmente.
Quando carregou na tecla Enter foi o momento para comer mais uma fatia e observar o texto que tinha escrito. Começava sempre por, Anónimus Sáide, e depois vinha a prosa, venenosa e irritante, como era a sua imagem de marca. Não havia contemplações nem palavras gentis. Desde que tinha descoberto o anonimato, a sua verdadeira pessoa, o seu interior sempre amordaçado, tinha finalmente começado a falar sem ter que dar a cara ou enfrentar opiniões contrárias às suas. Era uma espécie de voyeurismo activo que lhe dava imenso prazer.
Na travessa, jazia uma fatia fria e descolorida, quando fechou a tampa do portátil e se espreguiçou. O sol teimava em entrar por uma fresta da janela quase fechada. Já é manhã, pensou, Estou capaz de ir tomar um bom pequeno-almoço. A noite tinha sido gloriosa em comentários e tinha a certeza que o veneno que deixara iria fazer estragos.
Estranhou quando entrou no café e as pessoas se afastaram à sua passagem, enquanto se dirigia para o balcão. Sente-se bem?, perguntou-lhe o empregado, afastando-se dele com um certo ar de repulsa. Quis esboçar um sorriso amigável e não conseguiu. A face não reagiu. Ouviu o empregado dizer-lhe ainda que, O melhor é sair para não assustar as pessoas. Quis dizer qualquer coisa, mas a voz não lhe saiu. Confuso, dirigiu-se para a saída através do corredor aberto pelas pessoas que se afastavam à sua passagem.
Na rua, quando o polícia o interpelou, ainda teve o discernimento de tirar o bilhete de identidade da carteira para mostrar quem era. Com efeito, já não se lembrava quem era ou como se chamava, e não foi com espanto que leu no bilhete de identidade o nome de Sr. Anónimus Sáide. Espanto teve, quando voltou o bilhete de identidade para ver a fotografia da sua face, como era na realidade, e viu que já não tinha face. Tinha-a perdido na febre do comentário anónimo.
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(pintura de René Magrite)
2.1.11
A GATA DE SCHRODINGER
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“Para mim, tal como sou agora, hoje é o último dia. Este é o meu último entardecer. Quando o novo dia nascer, eu, tal como sou agora, já não estarei aqui. Outra pessoa diferente habitará o meu corpo.” (Haruki Murakami em Sputnik, meu Amor)
Uma das razões por que gosto que B me fotografe, é o registo das várias pessoas que passam por mim. Por vezes sinto-me como se fosse o gato, neste caso a gata, de Schrodinger que ilustra o paradigma quântico. Será que, se ninguém me observa, eu existo nesta realidade? A visão quântica diz-nos que nada é real até ser observado. Sendo a gata de Schrodinger, existo num estado indeterminado que não é vida nem é morte, até que alguém me observe...Nada é real se não é observado!
E tu, meu querido e amado B, tornas-me real todos os dias...
14.12.10
BIRD LIVES
A agulha elíptica Shure, penetrou nos sulcos algo poeirentos do disco de vinyl, e de imediato, o som do saxalto comprimiu o espaço da sala de estar e espraiou-se como uma onda até nos envolver por completo. Fechei os olhos, e fui de imediato transportada, para aquela noite quente por terras de Andaluzia.
Olhei em volta, e os edifícios em tijolo à vista que confinam a praça parecem guardiões milenários que nos protegem de um qualquer perigo não presente. Acendes uma cigarrilha e lanças-me aquele olhar, enquanto te afundas no cadeirão de verga.
Na periferia da Praça, as árvores fazem sobressair o coreto metálico, iluminado apenas pela luz da lua cheia. As sombras são de um negro puro, enquanto as luzes são de um branco prata, quase ofuscante. Pareceu-me ver uma sombra mais ténue no centro do coreto e faço-te sinal para me seguires. Levantaste agilmente com um sorriso maroto nos lábios, pensando no que eu não penso neste instante, e dás-me a mão distraidamente.
O círculo de luz prateada que envolve o coreto, rivaliza agora com o clarão amarelado que mantém as esplanadas no seu lugar. Ouvia-se um bruá de fundo algo longínquo e sinto as tuas mãos deslizarem pelos meus seios e os teus lábios de fogo no pescoço, naquele sítio que tu tão bem conheces. Fecho os olhos no instante em que começo a ouvir o som serpenteante do sax a emergir bem do centro do coreto. Começou de mansinho, mas aos poucos vai subindo de intensidade e a cadência dos acordes também sobe de ritmo. Sinto a tua respiração ofegante na nuca, o teu corpo quente a querer fundir-se no meu. Não abro os olhos quando me voltas para ti e me beijas. O sax solava agora numa profusão de substituições dementes. Ouço vozes a aconchegarem-me a ti e percebo que já não estamos sozinhos.
Sempre de olhos fechados, colo-me a ti no abraço e sinto o teu sexo sempre duro no desejo de mim. A música daquele instrumento envolve agora tudo e todos na periferia do coreto. Por incrível que pareça, fora do perímetro em que nos encontramos, como se de um círculo mágico se tratasse, ninguém ouve nada. As esplanadas continuam tão surdas como antes, no seu bruá monótono. À nossa volta, as pessoas que nos rodeiam começam a dançar espontaneamente num ritmo alucinante. Sinto a tua mão tocar-me a nudez interior e desejo que também toques o teu solo.
À nossa volta sinto o rodopio frenético dos corpos que dançam quase em transe, tal como os teus dedos. O tremor e o calor que me envolve prenunciam um fim, e de facto tudo pára. A música e as pessoas que rodeiam o coreto, agora silencioso. Abro os olhos no espanto dos olhares circundantes. As pessoas entreolham-se como que saídas de um encantamento. Tudo está como antes, só nós, que ouvimos aquela música, é que estamos diferentes, juntos e unidos na comunhão de algo que se começa a esquecer rapidamente, como o acordar dum sonho.
O teu olhar brilha na cumplicidade de nós. As pessoas começam a dirigir-se em direcção ás esplanadas de luz amarelada, quando são despertadas do torpor pela menina de cor que olha para o centro do coreto e grita um, Look, Look! Voltamo-nos a tempo de ver um grande pássaro branco a levantar voo e desaparecer na fronteira da luz prateada com o negro da noite.
Ao dirigirmo-nos para a luz amarelada da praça passamos pela menina de cor e reparo que um velho negro se apoia levemente no seu ombro. Vejo o velho saxofone oxidado no chão, ao lado da caixa de lata com alguns euros. Olho para aquela cara enrugada e percebo a cegueira nos olhos brancos que tudo querem ver. Chora silenciosamente. Lembro-me de em menina, na minha ingenuidade, pensar que os cegos não choravam. Sinto-me envergonhada nas lágrimas que começam a encher os meus olhos e agarro-me a ti. Levas-me dali, mas não resisto e olho mais uma vez para trás, para o velho músico negro.
O velho músico olha agora na direcção do coreto, faz um gesto vago e balbucia na voz rouca de noites passadas um, It´s you, Bird motherfucker!
(publicado no 1º Excitações)
9.9.10
SAUDADE DE LAURA
Carta que encontrei, entalada na base do ampliador...
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Quando a nossa filha nasceu, estava eu a começar a estudar a Respiração Circular com base num livrinho do Trent P. Kynaston. Passava horas na casa de banho com a boca cheia de água a esguichar devagarinho, enquanto inspirava ao mesmo tempo pelo nariz. Abdominais, músculos da bochecha e concentração. No Sax estudava os High Tones (Eugene Rousseau) e as intermináveis escalas que o meu professor insistia em praticar. Tá claro que ele é que tinha razão, mas eu queria era tocar e improvisar com os temas que tocávamos em conjunto do Jazz FakeBook. Ele tocava clarinete e eu sax. Tocávamos standards, todos. Ou tentávamos...Ele como músico profissional, embora estivesse reformado, tocava-os na perfeição. Eu ia no banco de trás....Então quando íamos para o bop e para os temas do Bird, esquece! LáSibemoldó, Lásustenido, Dó,RéMiSolFá, MiSol, em si bemol...reconheces o começo de Quasímodo? E este até nem era dos piores...
Mas o mais giro era quando a pauta tinha um acorde ligeiramente diferente do que é comum tocar ou do que estás habituada a ouvir. Ele tocava certo pela pauta e eu tocava um pouco de ouvido pelo que conhecia de cor dos discos. Claro que dava fífia e tínhamos que voltar atrás...Eu argumentava que soava melhor como eu tocava, mas ele dizia que quando eu estivesse sozinho tocava como quisesse. Na altura até transformei uma das casas de banho do apartamento em que vivíamos num estúdio forrado a painéis acústicos, para poder tocar à noite sem me chatearem.
Das experiências mais potentes que tive a tocar, foi em solo absoluto, improvisando em meditações de grupo, acompanhando quem conduzia a meditação. Da primeira vez deu-me uma branca, depois...conto-te um dia destes!
Resumindo, a nossa filha foi crescendo, a vida mudando e deixei de tocar vai para dois ou três anos. Falta de tempo, outros interesses criativos a ocuparem o espaço junto com a fotografia, a pintura, a escrita, a navegação (sem ser da net...) e o dia só tem 24 horas! Mas o Jazz, ou melhor dizendo, a boa música anda sempre por aqui!
A minha menina começou a gostar de Jazz depois de ir comigo ao Concerto do Charles Lloyd na Aula Magna. Depois foi o Concerto duplo do Joshua Redman e do Ornette Coleman no Coliseu. Um pouco mais forte, mas a conquistar-lhe o ouvido. E depois os míticos Set’s no Seixal Jazz do Paulo Gil. Hoje diz que eu a ensinei a gostar de jazz. É bonito, não é?
Também foste tu que iniciaste o Rainbowman no Jazz ou ele já tinha a chama? Hello Rainbow! O mundo já foi nosso, agora é a vez delas! Talvez seja a maneira de o mundo ficar mais bonito e terno...
Desculpa lá a chamada de atenção, mas tenho bastante consideração por ele, mesmo sem o conhecer! Só pelos posts e pelos comentários que faz no Excitações. À parte o Paulo Coelho (também não gosto), cheira-me que temos bastante em comum... Uma delas é partilharmos a vida com uma mulher que nos preenche na totalidade! Eu não devia dizer isto, mas vocês merecem!
Agora podes começar a ter a tua baixa de tensão. No atelier ouvíamos bastante o álbum Kamakiriad e acho que ainda tenho no meu estúdio uma K7 com esse disco. Era a altura em que praticávamos bastante o Michael Franks a par da Carla Bley e do sempre inesperado Charlie Haden, que conheci em Lisboa, naqueles tempos idos em que o Carlos Paredes lhe ofereceu uma Guitarra Portuguesa, e onde se combinou o disco a duo. Tempos que já não me lembro muito bem, mas que foram tempos de jazz, jazz e jazz. Ou o 25 de Abril não fosse uma improvisação em si bemol...
Quanto ao Livro do Miles, o meu está um pouco melhor, mas com as páginas bastantes amareladas e a cheirar a ácaros por tudo o que é sítio. E o Bird Lives, já leste? E o Chasin’ the Trane? E o ... Deixa lá que eu também não os li todos! Estão aqui na estante esperando a vez para se cumprirem!
A Maria está em pulgas porque não a deixo mexer no teclado, por isso vou ficar por aqui. Mas aproveito só para completar a carta, que Woody Allen é aqui residente! Só não gosto muito da fase Berguiana. É interessante, mas prefiro o Everyone Says I Love You , com o avô nu na fila do pão, do que a mulher fútil que sossega o marido cientista em Interiors (se é que não estou a confundir o título).
Gostamos, gostamos, gostamos! E o Play It again Sam com a cena do perfume a mais, é demais! Aliás o Woody Allen, é demais, sempre! Como nos Vigaristas...Sabes que um amigo meu, esteve há uns anos em NY e jantou no restaurante em que ele estava a tocar? Diz que na vida real é igualzinho aos filmes! Casaco de bombazine, pullover e o ar meio paranóico do costume, para alem do clarinete...New Orleans...
Mas é bonito ir revelando a vossa amizade! É como se a vossa imagem se fosse formando no papel molhado, oscilando para a frente e para trás no fundo da tina de revelação... A luz por enquanto é encarnada e difusa. Qualquer dia acendemos a luz e fixamos a foto. É capaz de lá estarmos todos! A preto e branco, com música de jazz em fundo!
(Esta última frase é da Maria! Não resistiu e teclou!)
beijinhos para ti e para o Rainbow
B e Maria
(A foto do teu sex/sax está linda!)
20.8.10
BELA ADORMECIDA
15.7.09
SOMOS QUEM SOMOS!
17.6.09
I´M A BLACK MAGIC WOMAN
31.10.08
EXCITAÇÕES NA BIBLIOTECA DE BABEL
29.9.08
MOUNT GAY
16.9.08
PRAZER EM CONHECER
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A noite era de calor tórrido e abafado. As ventoinhas exibiam as pás difusas, na lentidão do remexer o ar parado. O lobby do hotel, mesmo assim, era um oásis ténue no deserto da noite citadina.
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E vi-te entrar na camioneta da escola que partiu numa nuvem de poeira, como nos romances. E eu, a personagem feminina, deveria chorar a ver-te partir. Em vez disso fui tomar um banho de imersão bem frio. Não durou muito tempo porque as cucarachas também estavam cheias de calor, e apareceram para se refrescarem.
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A minha surpresa ainda foi maior, porque à minha frente estava um homem alto, ligeiramente curvado na minha direcção, como se estivesse a fazer uma pequena vénia. Reparei na altura que vestia um fato preto a contrastar com o forro dum vermelho vivo, camisa branca e gravata azul escuro com riscas laranjas, brancas e azul claro. Fiquei presa naquelas riscas hipnóticas e fui despertada pelo fumo acre da cigarrilha cubana.
. Let me please introduce myself / I’m a man of wealth and taste, continuava a canção cada vez mais familiar. Ele sentou-se a meu lado, e num gesto no limite do charmoso, pegou-me delicadamente na mão e simulou o beijo, que embora não tendo existido, (será que não existiu?) teve o condão de me provocar um arrepio que percorreu o braço direito, entrou pelo pescoço e espraiou-se pelo tronco até sair pelo sexo na vibração quase, quase órgásmica. Olhei atónita e confusa para a silhueta em contra luz, que ainda mantinha a minha mão na dele. Senti-lhe os olhos de fogo e tentei descortinar o que haveria dentro deles.
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So if you meet me / Have some courtesy / Have some sympathy, and some taste…, continuava a canção já conhecida, mas não identificada. As congas acentuavam o ritmo e a voz era cada vez mais possessiva, como o olhar que me envolvia e apertava como uma cobra a imobilizar a sua presa. Queria perguntar-lhe o nome, mas não consegui. Em vez disso, vi-te a sorrir. Pensavas em mim e soube isso naquela altura, naquele instante em que senti, ou pensei ouvir uma gargalhada rouca a ecoar bem no fundo de mim mesma. Olhei de novo para o homem que tinha a meu lado, traçara a perna e pusera o braço a contornar-me os ombros nus. Senti um frémito de gozo antecipado e num impulso bem consciente, não posso mentir, desapertei o corpete, botão a botão, e mostrei-lhe os seios sequiosos de luz. Ainda hoje não sei porque o fiz, mas a vontade de abrir o corpete e mostrá-los foi avassaladora.
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Tell me baby, whats my name / Tell me honey, can ya guess my name / Tell me baby, whats my name / I tell you one time, youre to blame / Ooo, Who…., finalizava Mick Jagger. O homem sorriu (será que sorriu?), na minha direcção, levantou-se e pronunciou as únicas palavras de que me lembro, Señorita..., e cruzou a porta do hotel no instante em que entraste. As tuas palavras, quando me viste, assim exposta e meio atordoada, ficaram para sempre gravadas na minha memória, Vinha com uma saudade louca de te beijar os seios... como é que adivinhaste?
Nunca tive a coragem de te dizer. Até hoje!
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(texto publicado no Excitações Primeiro Set)