19.12.11

CALOR ANIMAL

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O meu amigo Louis Le Clésio passa a vida a protestar pelo facto do meu cão encher o interior do barco de tufos de pêlo preto. Eu argumento que sempre é preferível apanhar uns tufos de pêlo preto, do que apanhar uns pêlos pretos solitários e de origem duvidosa. Entramos de seguida na sempre estéril argumentação sobre o significado, no contexto, da palavra duvidosa. Como está bastante calor aqui em Béquia, sabe bem velejar e sentir o vento a acariciar os corpos nus, de modo que quando a troca de palavras chega à fase de ilustrar a definição da palavra duvidosa, os olhares cruzados queimam os corpos e a discussão dilui-se e escapa-se pelos buraquinhos da borda falsa e cai ao mar, para voltar na brisa marítima, qualquer outro dia em que o tema venha à baila. Invariavelmente, o cão como que sabendo que naquele momento é o centro das atenções, chega-se a mim e apoia a cabeça no meu peito. Sinto o seu calor e a sua postura, como quem pede desculpa de ser o animal que é, com uma grande reserva de tufos de pêlo para cair, não podendo fazer nada para o evitar. Olho para o Le Clésio com a intenção de o desancar pela insensibilidade demonstrada, mas fico desarmada com o sorriso radioso que me lança, sorriso já ladeado por dois copos na mão esquerda e uma garrafa de Mout Gay reserva na direita, já meia cheia (meia vazia para nós). Palavras, leva-as o vento, como diz o ditado. Fica a amizade e o calor, neste caso o calor que nos aconchega na entrega sincera e simples do animal, tão diferente dos esquemas e das complicadas relações humanas.

21.2.11

O SENHOR ANÓNIMUS SÁIDE

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Levantou-se da cadeira e foi com um certo ar de enfado que abriu a porta ao rapaz da Pizza Na Hora. Nem o sorriso meio comercial com que foi presenteado enquanto recebia a enorme caixa tamanho XL o afectou. E foi com agrado que fechou a porta e se dirigiu para o escritório, bastante desarrumado até para o seu gosto. Nos últimos tempos já não saía muito de casa e o escritório era o local onde passava a maior parte do tempo.

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Partiu a Pizza em fatias estreitas e pequenas, empilhou-as numa travessa e dirigiu-se para a mesa do computador. Era uma mesa espartana que contrastava com o resto do espaço. No centro, apenas pontuava um computador portátil e respectivo rato. Na ponta, um candeeiro de halogéneo iluminava o resto da mesa com uma luz branca que se misturava com a luz ténue do ecrã aceso.

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Matraqueou o teclado na certeza de um qualquer endereço electrónico e recostou-se saboreando uma fatia de pizza enquanto a página se resolvia na janela do portátil. Era um blog que não conhecia, virgem de si e dos seus comentários. Sorriu na antecipação do prazer e comeu outra fatia, retardando o momento sempre fascinante em que começava a percorrer os postes até encontrar um que lhe merecesse um comentário. Quando isso aconteceu, fechou os olhos como que a permitir que a inspiração o iluminasse e de seguida começou a escrever febrilmente.

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Quando carregou na tecla Enter foi o momento para comer mais uma fatia e observar o texto que tinha escrito. Começava sempre por, Anónimus Sáide, e depois vinha a prosa, venenosa e irritante, como era a sua imagem de marca. Não havia contemplações nem palavras gentis. Desde que tinha descoberto o anonimato, a sua verdadeira pessoa, o seu interior sempre amordaçado, tinha finalmente começado a falar sem ter que dar a cara ou enfrentar opiniões contrárias às suas. Era uma espécie de voyeurismo activo que lhe dava imenso prazer.

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Na travessa, jazia uma fatia fria e descolorida, quando fechou a tampa do portátil e se espreguiçou. O sol teimava em entrar por uma fresta da janela quase fechada. Já é manhã, pensou, Estou capaz de ir tomar um bom pequeno-almoço. A noite tinha sido gloriosa em comentários e tinha a certeza que o veneno que deixara iria fazer estragos.

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Estranhou quando entrou no café e as pessoas se afastaram à sua passagem, enquanto se dirigia para o balcão. Sente-se bem?, perguntou-lhe o empregado, afastando-se dele com um certo ar de repulsa. Quis esboçar um sorriso amigável e não conseguiu. A face não reagiu. Ouviu o empregado dizer-lhe ainda que, O melhor é sair para não assustar as pessoas. Quis dizer qualquer coisa, mas a voz não lhe saiu. Confuso, dirigiu-se para a saída através do corredor aberto pelas pessoas que se afastavam à sua passagem.

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Na rua, quando o polícia o interpelou, ainda teve o discernimento de tirar o bilhete de identidade da carteira para mostrar quem era. Com efeito, já não se lembrava quem era ou como se chamava, e não foi com espanto que leu no bilhete de identidade o nome de Sr. Anónimus Sáide. Espanto teve, quando voltou o bilhete de identidade para ver a fotografia da sua face, como era na realidade, e viu que já não tinha face. Tinha-a perdido na febre do comentário anónimo.

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(pintura de René Magrite)

2.1.11

A GATA DE SCHRODINGER

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“Para mim, tal como sou agora, hoje é o último dia. Este é o meu último entardecer. Quando o novo dia nascer, eu, tal como sou agora, já não estarei aqui. Outra pessoa diferente habitará o meu corpo.” (Haruki Murakami em Sputnik, meu Amor)

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Uma das razões por que gosto que B me fotografe, é o registo das várias pessoas que passam por mim. Por vezes sinto-me como se fosse o gato, neste caso a gata, de Schrodinger que ilustra o paradigma quântico. Será que, se ninguém me observa, eu existo nesta realidade? A visão quântica diz-nos que nada é real até ser observado. Sendo a gata de Schrodinger, existo num estado indeterminado que não é vida nem é morte, até que alguém me observe...Nada é real se não é observado!

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E tu, meu querido e amado B, tornas-me real todos os dias...

 
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