31.5.08

OLHOS TRISTES

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Chegou a casa decidido a senti-la mais intimamente do que era costume. Ligou a aparelhagem, procurou o cd de Tony Scott, “Music for Yoga Meditation” e pô-lo a tocar ao mesmo tempo que punha os auscultadores. Sentou-se em posição confortável, descansou os braços nas pernas e fechou os olhos. Os sons da cítara, aliados aos do clarinete, transportaram-no para aquela zona conhecida, a que chamava o plano da consciência criadora.
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Aproveitou o primeiro tema, “Prahna”, para a procurar fora das ilusões coloridas da mente vigilante. Deixou as vagas de cores esfumarem-se como nuvens no céu, até desaparecerem no vazio que o começava a preencher. Não ousou perguntar, Onde estás?, e deixou-se transportar nas vibrações harmónicas.
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Encontrou-a no começo do segundo tema,”Shiva”. A princípio, eram apenas uns grandes olhos tristes que pairavam no vazio, sem cabeça ou corpo aparente. Lentamente, observou como a cabeça se formava a partir dum ponto azul, a brilhar na base do pescoço. O corpo tomou forma instantaneamente, não uma forma física comum, mas sim uma forma de luz esbranquiçada. Conseguia distinguir os braços ou o que lhe parecia serem os braços, e decidiu agir. Abriu os seus próprios braços e com um impulso, elevou-se até ela e colou-se ao seu corpo de luz. Ela copiou a sua posição e juntos rodopiaram no vazio consciente.
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Resistiu à tentação de percorrer os vórtices dela, um a um, e apenas observou o vórtice azul que vibrava na base do pescoço. Estava tingido de púrpura e emanava filamentos em direcção aos braços. Sem lhe tocar e usando de imagens pensamento, devolveu a cor azul cyan ao vórtice e eliminou os filamentos. De seguida estendeu os ténues raios azuis pelos ombros, braços e mãos, até os alinhar convergentemente. A imagem que se formou, era composta por várias crianças e alguns adultos. Intuiu a manifestação do querer presente e sem tomar qualquer atitude, afinal estava ali apenas para a sentir, impulsionou-a para cima com força.
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Ela atravessou as últimas notas do terceiro tema, “Samadhi”, como se de nuvens se tratasse. Parou na luz dourada, ao mesmo tempo que a vibração rouca da palavra OM do quarto tema, “Hare Krishna”, a inundava e tingia de energia consciente. Afastou-se para a observar de longe. Os olhos tristes estavam serenos e fechados no sorriso de paz finalmente que a envolvia.
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Lentamente, tomou consciência de outros sons na periferia da atenção, e fez um esforço para retomar o movimento físico ao abrir os olhos. Como sempre lhe acontecia, sentia-se a voltar de muito longe, talvez do local onde os sonhos se transmutam na realidade intuída e nem sempre vivida.
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Levantou-se e desligou a música. O fim de tarde, entrava pela janela aberta, com as primeiras luzes acesas. O cão ladrou na expectativa de um passeio até ao parque. Olhou o silêncio à sua volta, opaco e espesso como o vinho tinto novo. Fez uma festa na cabeça do cão, e com passo decidido, foi abrir uma garrafa de Valado Tinto, pois então!
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21.5.08

PAR4

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Ao cruzar o portão de ferro da Quinta, automaticamente olhou para o lado esquerdo, na direcção do driving range, para medir a visibilidade e notou que se começava a formar uma neblina que esbranquiçava a parte mais afastada do campo. Acelerou na rampa e parou em frente à casa do clube. Estava tudo fechado e não se via vivalma.
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Ao tirar do carro o saco com os ferros foi com satisfação que colocou a pequena gabardina a protegê-los. Ligou o motor eléctrico do carrinho e dirigiu-se para o primeiro buraco.
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A neblina começava a ficar mais espessa mas por enquanto a visibilidade ainda era boa. Do ponto de saída, via nitidamente o lago em frente e o green do primeiro buraco já um pouco branqueado, mas ainda visível. Escolheu uma bola Spalding Pró II de cor laranja, para uma melhor visualização da trajectória, colocou-a no tee com um cuidado já ritual e colocou-se em posição. Olhou fixamente o ponto para onde queria que a bola fosse e de seguida imaginou a trajectória desde a pancada até ao green, passando por cima do lago. O lago já há muito que tinha deixado de ser um problema para ele, embora tenha pago um tributo bem elevado em bolas que lá foram parar, mas agora era um mero obstáculo a ultrapassar. Olhou uma última vez para a bandeira do primeiro buraco e fixou o olhar na bola, ensaiando o swing com um movimento bem lento. Pelo som grave do batimento percebeu logo que era uma boa pancada, enquanto o final do swing conduzia o olhar na direcção da bola que cruzava o lago em direcção à margem oposta. Em cheio no green, com um bocado de sorte ainda faço um birdie, pensou para consigo enquanto atravessava a ponte de madeira. O silêncio que o envolvia, fazia-o sentir-se especial e privilegiado, por estar naquele sítio e àquela hora, fazendo uma das coisas que lhe dava mais prazer. Sentia-se o rei do mundo naquele momento.
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Assim que viu a bola no meio do círculo relvado, voltou à realidade, e começou a estudar a melhor maneira de colocar a bola no buraco só com uma tacada. Agachou-se como de costume para avaliar a rugosidade e o nível do relvado. Um ligeiro efeito para contrariar o declive deve bastar, pensou. Dirigiu-se à bandeira e retirou-a do buraco, depositando-a de seguida na orla do green, reparando que a neblina estava a aumentar. Já não distinguia o tee de saída do primeiro buraco, a visibilidade estendia-se agora até à margem mais afastada do lago. Apressando o passo, sacou o putter, e ensaiou lentamente o movimento, ao mesmo tempo que começava a entoar um refrão duma canção como se fosse um mantra. Não sabia como tinha começado a fazer tal coisa, mas agora era tão natural em si como respirar. Entoou uma vez mais o refrão e bateu com decisão uma pancada quase perfeita. A bola, depois de percorrer um arco, passou a escassos centímetros do buraco, parando a cerca de um palmo de distância. Porra, é preciso ter azar, disse para consigo, enquanto metia a bola displicentemente no buraco com uma pancada leve e seca. Voltou a colocar a bandeira no seu lugar, e dirigiu-se ao buraco dois olhando para trás na direcção do lago. A visibilidade estava a diminuir, já só conseguia distinguir metade do lago.
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O buraco dois era um Par 4, e gostava cada vez mais dele, embora a princípio não fosse assim. Parecia fácil, era uma linha recta, e no entanto as bolas tinham tendência para fazerem uma deriva para a direita em direcção ao outro lago e quando tentava corrigir a deriva, era para a esquerda que ia, para o meio das árvores donde era muito difícil tirá-la. Como em tudo era uma questão de prática e agora, normalmente colocava a bola no eixo, apenas com um deslocamento mínimo.
. Olhou na direcção do farway, e lá em baixo só viu névoa, embora conseguisse distinguir o vulto do green que estava mais acima, enquadrado pela barreira de árvores bastante altas. Uma vez mais, imaginou a trajectória da bola enquanto preparava a pancada, fixou o ponto onde queria que ela caísse e iniciou o swing. Pelo som da pancada ficou a saber que não tinha batido bem, e ao olhar para a bola que se afastava em direcção à parede branca de névoa, percebeu que a trajectória torcia para a direita numa longa curva em direcção ao lago. Quando deixou de ver o ponto laranja que se afastava rapidamente, calculou mentalmente o ponto de impacto e concluiu que não tinha chegado ao lago. Guardou o taco no carrinho e começou a descer a rampa que levava ao farway, embrenhando-se lentamente na neblina que começava a envolver todo o campo.
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Bonito, não vejo um palmo à frente do nariz, ainda me arrisco a ir parar dentro do lago. E onde é que está o raio da bola? Pousou o carrinho e começou a contar os passos que dava numa direcção, depois parava e afastava-se na perpendicular três passos e voltava atrás o mesmo número de passos inicial. Assim ia fazendo um varrimento do terreno em zigue-zague, tendo o carrinho como ponto de partida. Quando ia iniciar a quarta viragem, o olhar foi atraído para uma mancha alaranjada à sua direita. Deu dois passos e exclamou com júbilo, Gotcha, Cockroach! O que no jargão pessoal que usava significava simplesmente, apanhei-te! No entanto preferia usar a frase emblemática do gato do Fat Freddy da banda desenhada dos Freack Brothers. Olhou na direcção do carrinho e ainda conseguiu ver o seu vulto, de seguida despiu o blusão e marcou o sítio. Quando voltou com o ferro número sete na mão, tremia ligeiramente e apanhou rapidamente o blusão para se aquecer. No entusiasmo da situação esquecera-se que estava bastante frio, Tá um briol que faz favor..., pensou para consigo, E eu aqui perdido neste nevoeiro a tentar acertar num buraco que nem se vê a bandeira. Olhou para a mancha escura mais acima do ponto onde se encontrava e concluiu que seriam as árvores que rodeavam o green. Era para ali que tinha que bater a bola, bastava-lhe fechar os olhos e imaginar o local, já que o conhecia tão bem. Vá lá, tive sorte, a bola caiu em cima de umas raízes e está um pouco elevada em relação à relva, mesmo a pedir uma pancada.
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Preparou o swing, fez uma curta pausa e quando ia iniciar o movimento descendente, pareceu-lhe ouvir um clamor, como se umas dezenas de vozes gritassem ou cantassem em uníssono. Parou e olhou em volta, mas o silêncio que o envolvia fê-lo franzir a testa. Que raio? pensou, enquanto se posicionava outra vez para bater a bola. Antes de iniciar de novo o swing, fechou os olhos e concentrou-se nos sons à sua volta, mas só distinguia o vento que soprava leve. No preciso momento em que a ponta do ferro lhe tocou as costas antes de começar o swing, explodiu-lhe de novo na cabeça o clamor de muitas vozes. Ficou parado e quieto com o movimento suspenso na interrogação e o coração a bater mais rápido. Lembrou-se dos tempos em que cantavam a Internacional em altos gritos, levados pelo entusiasmo da revolução, mas o som que ouvira não lhe parecia de júbilo mas sim de aflição, e também não era a Internacional, disso tinha a certeza. Mas agora a situação era diferente, parecia-lhe que o som que ouvira não era exterior a si, mas interior. Surgira-lhe algures na zona por trás dos ouvidos e fora acompanhado por um desconforto na zona do estômago, muito parecido com os engulhos que experimentava por vezes aquando de recordações induzidas por uma música específica. Agora ouço vozes, costumava ser música ou um ou outro pensamento obsessivo. Bom, com vozes ou não, vamos lá bater a bola porque já estou completamente encharcado com toda esta humidade, disse para consigo. Mas desta vez não chegou a preparar o movimento, porque no preciso momento em que acabou o pensamento, outro se formou bem no centro da cabeça e dizia, Olha para nós. O pensamento ficou uns instantes a pairar e desapareceu. Começou a não achar graça nenhuma a tudo o que lhe estava a acontecer. Olha para nós? nós quem? O ambiente em que se encontrava, sozinho e em silêncio no meio daquele limbo esbranquiçado, era propício a histórias de espíritos, mas ele não acreditava em nada disso, era um céptico empedernido e cultivava essa faceta com muito carinho. No entanto, naquele instante e naquele lugar branco, quase que suspenso no vazio, não conseguiu evitar um calafrio, e não era de frio mas sim de desconforto perante algo do qual não fazia a mais pequena ideia. Semicerrou os olhos e olhou à sua volta lentamente, perscrutando as sombras e procurando vultos ou padrões para lá da neblina. Está aí alguém? Gritou, mais para ganhar confiança do que para obter qualquer resposta. Sabia que não ia ter resposta alguma e pensou que se alguém lhe respondesse, apanhava um valente susto. Olha para nós? Devo estar a enlouquecer, finalmente.
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Sentiu uma ligeira brisa a roçar-lhe a face no preciso momento em que outro pensamento se começou a formar. Desta vez a sensação era agradável e dizia apenas, Para baixo. O que queria aquilo dizer? Para baixo? interrogou-se de novo, para baixo o quê? Olha para nós? Para baixo? Seria isso? E instintivamente olhou para baixo na direcção dos pés e da bola laranja em cima das raízes.
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Não achou nada de estranho nos pés, aparte estarem um pouco sujos de lama, a bola continuava em cima das raízes, a relva envolvente era como sempre fora, verde e macia. Olhou mais de perto para a bola e a visão desfocou ligeiramente, embora lhe parecesse ver um brilho fugaz junto às raízes. Os óculos, precisava deles para ver mais ao pé, onde estariam? Na porra do carro, pensou. Automaticamente juntou o indicador e o polegar dobrado de forma a deixar apenas uma pequena abertura por onde espreitar, assim conseguia ver a imagem focada e nítida através do diafragma improvisado. Era um truque que usava quando não tinha óculos por perto e também pessoas, normalmente ficavam a olhar para ele com aquele ar desconfiado e estúpido, típico de quem não entende o que se está a passar.
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Assim que espreitou pelo buraco dos dedos, a respiração parou momentaneamente, como que para não perturbar o que estava observando. As raízes não eram raízes, mas sim pequenas hastes metálicas que sustentavam a bola alaranjada cerca de um centímetro acima da relva, e reluziam com um brilho metálico e molhado. Na ponta abriam e formavam um círculo que estava em contacto com a relva. Olhou melhor e contou sete varões que saíam da superfície da bola. A superfície alaranjada era na realidade bem lisa, sem qualquer concavidade típica das bolas de golfe actuais, e também aparentava ser de origem metálica, embora não conseguisse distinguir qualquer detalhe ou relevo, apenas uma luminosidade baça que emanava da sua superfície. Olhou ao redor e não viu nada escrito, nem Spalding, nem 1 PRO II. Definitivamente não era a sua bola de golfe, nem tão-pouco era uma bola de golfe. Recusou-se a pensar o óbvio e não resistiu a tocar-lhe muito ao de leve. Sabia que era uma imprudência enorme tocar naquele objecto, mas não resistiu.
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No momento em que o dedo tocou na superfície da bola alaranjada, todo o seu ser foi sacudido por uma onda de prazer bastante agradável, e quando começou a esboçar um sorriso, o interior da cabeça encheu-se de novo do coro de vozes em uníssono, agora expressando júbilo e contentamento, em contraste com a angústia que sentira momentos antes. Existem seres dentro desta bola que de uma maneira qualquer comunicam comigo, mas devem ser minúsculos. O coro de vozes parece ser de umas boas dezenas de seres, pensou para consigo. Franziu mais o olho na esperança de visualizar algum detalhe na superfície da bola, uma porta ou janela, mas nada, a superfície era bem lisa. Aproximou de novo o dedo e ao tocar a bola sentiu a sensação agradável ao mesmo tempo que uma ideia nova se formava bem no centro geométrico da sua cabeça, Obrigado. Desta vez o pensamento tinha cor, e a cor era de um dourado ofuscante, pelo menos era a sensação que tinha. Sentiu a superfície da bola a começar a vibrar e instintivamente tirou a mão. A cor laranja começou a tender para o lilás e a bola começou a elevar-se do solo até ficar ao nível dos olhos. Os pés de apoio ou hastes, as famosas raízes, começaram a recolher até não ficar vestígio algum delas. A bola metálica afastou-se com um movimento lento, parando depois abruptamente. Ele aproximou-se e a bola afastou-se de novo, parando mais à frente. Queres que eu te siga, não é? E começou a segui-la assim que se moveu.
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A névoa continuava bem espessa e deu uns poucos de passos hesitantes e cautelosos até que a bola parou e começou a descer em direcção ao chão. Seguiu-a com o olhar e para seu espanto viu outra bola alaranjada na relva molhada, bem junto aos seus pés. Será a minha bola ou será outra coisa igual a esta? Endireitou-se e no momento em que olhou de frente para a bola, agora de cor azulada, uma luz branca encheu-lhe o campo de visão enquanto a palavra Adeus piscou por uma fracção de segundo no limiar do consciente e desvaneceu-se no preciso instante em que a bola se desmaterializou.
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Olhou para a bola alaranjada e sem saber porquê, ajoelhou-se para ver se era a sua bola, Spalding 1 Pro II, naquele que passaria a ser um gesto intuitivo e compulsivo que passaria a fazer, fosse num simples treino ou num torneio, sempre que encontrava a bola que julgava ser a sua, e sempre se interrogaria do porquê de tal acto. Após verificar que era a sua bola, vislumbrou o green através da neblina que começava a ficar menos espessa, concentrou aquele momento no movimento circular que bateu a bola em direcção ao monte verde que ficava a seguir à mancha de areia. Em cheio no green, com um bocado de sorte ainda faço um birdie...
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15.5.08

FILHO DA MÃE DO ARTURO PEREZ-REVERTE

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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Leu na página trezentos e quarenta e um, oitava linha a contar de cima, do romance que estava a ler, O Cemitério Dos Barcos Sem Nome. Finalmente encontrava uma frase que traduzia o seu estado de espírito sempre que pensava nela. Por isso evitava falar-lhe. Por isso evitava escrever-lhe. Por isso evitava pensar nela.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Por vezes havia uma linha que valia pelo livro todo. Esta era uma delas, pensou. Filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte. Com esta linha passava, na sua consideração, à frente do Jorge Luís Borges. E gostava do Borges como se fosse a sua sombra. Por vezes andamos uma vida inteira a bater com a cabeça nas paredes, e a chave para a porta de saída da sala em que nos encontramos, está numa simples linha escrita por outrem. O romance até que não era nada de outro mundo, aparte o facto de estar escrito por alguém que gosta do mar, que gosta de sentir o vento na enxárcia e se sente desconfortável quando tem a costa a sotavento.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Efectivamente, era esse sentimento que sempre o pusera desconfortável. Tornava-se claro para ele que tudo tinha sido um equívoco bem desagradável. Amava-a estupidamente, pensou. Porquê? Vá lá saber-se? Alguma vez foi bem-vindo? Alguma vez seria bem-vindo?
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Que é que este agora quer? Ouvira uma vez na fracção de segundo que antecedeu o telefonema por atender. A mensagem era clara como a água na baía de Karavostasi. Só não entende quem não quer! Fizera loucuras por ela, sofrera e chorara como um cão louco na ausência do dono. O amor tornara-se doença. Doença, porque não era retribuído. O amor nunca pode ser unilateral, pensou, senão apodrece e transforma-se em algo doente.
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Não quero mais amar-te, porque sei que não sou bem-vindo, ouviu no seu interior. Se o fosse, a vida sorriria mais, a nostalgia que vem com a solidão não faria sentido e a própria solidão deixaria de ser. Sentia amargura por ter sido tão estúpido e ingénuo. Provavelmente para ela, ele tinha sido mais um, mais uma experiência que não tinha resultado, ou mais uma desilusão que o ser perfeito que ela pensava que era, tivera no decurso da sua vida iniciática em direcção ao ser sublime. Era isso, tinha falhado na encarnação do ser perfeito, concluiu com alguma ironia.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Mais uma vez leu a linha que luzia na página trezentos e cinquenta e um, oitava linha a contar de cima e fechou o livro. Sentia-se como se tivesse lido todos os livros escritos e por escrever. Lembrou-se novamente de Borges e da Biblioteca de Babel. Sempre Borges e o duplo. Sempre a comunhão com o absurdo da existência. Recordou uma vez mais aquele amor que se tornava cada vez mais distante e num último beijo dizia-lhe, Quando sentires que sou bem-vindo, e não apenas tolerado, chama-me no comprimento de onda do amor que tudo purifica. Chama-me e nesse preciso instante verás que estou a teu lado. Serás sempre bem vinda!
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Filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte, tinha que lhe escrever a agradecer a linha que tinha escrito para ele. Não se conheciam, mas ele sabia que aquela linha era para ele, só podia.
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8.5.08

O DEMÓNIO DE DAGUERRE - (Reprise)

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O fim de tarde era nosso, e a luz que entrava pela janela do estúdio também nos pertencia. Lá fora a tempestade, cá dentro a música cálida de quente do quarteto de jazz de Sophie Milman. A preguiça do desejo, é algo que me excita devagarinho. Quero-te, mas não é já. Quero-te daqui a pouco, quando a preguiça se transforma em lascívia e o olhar transpira carícias antecipadas.
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Preparas a máquina e os rolos com uma precisão quase demente. O teu fotómetro mede a luz ambiente, perscrutando as penumbras e as zonas de luz como se fosse uma sonda espacial à procura de vida num planeta estranho. A tempestade aproxima-se e a Sophie canta, I feel pretty / Oh so pretty / I feel pretty and witty and gay...Olhas para mim no olhar hesitante do desejo adiado. Vence o demónio de Daguerre. Sorris para mim e dizes para me descontrair.

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Alargo a preguiça e começo a desnudar-me. Sabe-me bem sentir os seios na nudez repentina. Começo a ficar molhada de antecipação. Sabes que fotografar-me é como fazer amor comigo. Cada click uma penetração, suave por vezes, bem funda por outras. I feel charming/Oh so charming/It's alarming how charming I feel/And so pretty/That I hardly can believe I'm real., continua a voz que dança na luz difusa que ainda ilumina o estúdio. Um relâmpago, antecipando o trovão ainda longe, acende o tecto como se estivesses a usar o flash. Não evito um arrepio. Não é do frio, deve ser da electricidade suspensa no ar cada vez mais húmido do dia que finda. Parece que o dia chora por se ir embora.
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Mudas o rolo para um mais sensível. Sei que queres apanhar a luz e sombra da tempestade que substitui o teu flash. Cantas em uníssono, Such a pretty face / Such a pretty dress / Such a pretty smile / Such a pretty me! E disparas o obturador no preciso momento em que o relâmpago me inunda de luz, no ribombar do trovão em simultâneo.
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Sinto os mamilos a ficarem rijos, a nuca na tontura inversa e o meu sexo quase orgásmico a diluir-se no escuro que me começa a envolver. Deixo de te ver e por fim deixo de me sentir. Apenas te ouço, bem longe, muito longe. E sei que me procuras...

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Começo por rejeitar a ideia de estar dentro da Nikon F2S, impressa no rolo de 35mm como mais uma imagem capturada ao meu ser real. O negro é total, mas sinto o movimento e os sons no exterior. E acabo por aceitar a irrealidade da situação. Sou uma mera impressão na prata que reveste a película perfurada. Lembro-me de em tempos te ter pedido para me revelares o desejo, e tento chorar, mas não consigo. As imagens não choram.

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Sinto-me enrolar em mim, como um feto, para de seguida me mergulhares num líquido morno e viscoso. Na minha realidade complanar, começo a sentir a transformação química que me aproxima do teu mundo. Sinto a luz no momento em que mergulho no turbilhão da água corrente. É quase um nascimento, não consigo gritar mas entendo a tua excitação bem próxima de mim.

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A luz branca queima-me o corpo em negativo, e percebo que me projectas para o papel sensível colado na parede. Ajustas o foco e o meu corpo de luz oscila no foco. Lembro-me daquele filme do Woody Allen em que um dos personagens aparece sempre “out of focus” e peço-te, imploro-te até, para que me não desfoques. Eu sei que não serve de nada, mas peço-te na mesma.

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Finalmente a minha imagem é projectada através dos filtros de cor e impressiono o papel na parede. Volto a ser uma imagem virtual, uma promessa de ser, e novamente espero que me reveles. Aproximas-te com uma esponja e começas a revelar-me por fim. Primeiro a cabeça, depois, demoras-te um pouco nostalgicamente nos seios e por fim o resto do meu corpo arrancado ao fim do dia quase perfeito. A imagem acabou de se formar mas ainda continua presa ao papel. Grito-te no desespero para me tornares real. A tua mão começa por me acariciar os seios planos, continua desenhando o contorno do meu corpo, pára por instantes no sexo e volta aos seios. Colas-te a mim na saudade, e por fim beijas-me os lábios salgados da revelação. E tornas-me real no relâmpago inverso da paixão de nós. Agora posso chorar de novo!
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(texto editado no Excitações - Primeiro Set)
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