19.12.11

CALOR ANIMAL

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O meu amigo Louis Le Clésio passa a vida a protestar pelo facto do meu cão encher o interior do barco de tufos de pêlo preto. Eu argumento que sempre é preferível apanhar uns tufos de pêlo preto, do que apanhar uns pêlos pretos solitários e de origem duvidosa. Entramos de seguida na sempre estéril argumentação sobre o significado, no contexto, da palavra duvidosa. Como está bastante calor aqui em Béquia, sabe bem velejar e sentir o vento a acariciar os corpos nus, de modo que quando a troca de palavras chega à fase de ilustrar a definição da palavra duvidosa, os olhares cruzados queimam os corpos e a discussão dilui-se e escapa-se pelos buraquinhos da borda falsa e cai ao mar, para voltar na brisa marítima, qualquer outro dia em que o tema venha à baila. Invariavelmente, o cão como que sabendo que naquele momento é o centro das atenções, chega-se a mim e apoia a cabeça no meu peito. Sinto o seu calor e a sua postura, como quem pede desculpa de ser o animal que é, com uma grande reserva de tufos de pêlo para cair, não podendo fazer nada para o evitar. Olho para o Le Clésio com a intenção de o desancar pela insensibilidade demonstrada, mas fico desarmada com o sorriso radioso que me lança, sorriso já ladeado por dois copos na mão esquerda e uma garrafa de Mout Gay reserva na direita, já meia cheia (meia vazia para nós). Palavras, leva-as o vento, como diz o ditado. Fica a amizade e o calor, neste caso o calor que nos aconchega na entrega sincera e simples do animal, tão diferente dos esquemas e das complicadas relações humanas.
 
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