31.10.08

EXCITAÇÕES NA BIBLIOTECA DE BABEL

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Ao princípio não me apercebi que lugar era aquele. Tinha acabado de deslizar para aquele estado de bem-aventurança pós orgasmo, quando a porta do quarto mudou de cor e o espaço que me envolvia transformou-se por completo.A cama com os lençóis de linho branco, todos emaranhados, desapareceu. O roupeiro embutido na parede desapareceu. Olhei para o meu lado e, já sabia que assim seria, B desapareceu também. Só o grande espelho que forrava a parede fronteira à cama tinha ficado, embora o seu brilho agora fosse cinzento metálico. Devia ser para combinar com o tom metálico da porta.
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Olhei-me a ver se continuava eu mesma, e suspirei de alívio. Os seios eram os mesmos, um bocadinho mais erectos do que o costume, a barriga era a que eu conhecia, os pelos púbicos aparados como sempre e os pés, eram os meus pés! Sem dúvida que eu não mudara.
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A medo abri a porta e entrei numa galeria hexagonal com um poço de ventilação no meio, cercado por parapeitos baixíssimos. As paredes estavam forradas por estantes com livros. Olhei para cima e os pisos de galerias idênticas estendiam-se até ao infinito. Olhei para baixo e era o mesmo cenário. Onde estaria? Numa biblioteca, sem dúvida, mas que biblioteca? Não tinha conhecimento de nenhuma assim.Resolvi passar para a galeria seguinte e vi a minha imagem reflectida no espelho do saguão de ligação das galerias. Estava nua, apenas com umas meias pretas e ligueiros, mas sem cinto de ligas. Observei melhor e reparei que os ligueiros estavam presos aos grandes lábios com umas molas pretas. Senti a excitação expandir-se pelo meu corpo nu à medida que caminhava para a próxima galeria hexagonal. Cada passo que dava fazia com que estremecesse de prazer e me arrepiasse toda.No que me pareceu uma eternidade, acabei por chegar à próxima galeria. Era igual à outra, cheia de estantes e livros. Ao acaso puxei uma lombada de cor preta. Voltei-o para ver a capa e quase o deixei cair de incrédula. A capa era igualmente preta, com uma fotografia de uma mulher nua ajeitando as meias pretas com ligueiros. Mas não foi isso que me fez tremer as mãos e quase deixar cair o livro.
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Foi o título do livro, EXCITAÇÕES, em letras brancas e grandes, e em letra mais pequena, Fotografias de B...
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. Devia estar a sonhar! Sem largar o livro decidi passar para outra galeria e só então reparei no bibliotecário que se encontrava à secretária, escondido na penumbra do próximo saguão de ligação. Resolvi perguntar-lhe como se poderia sair dali. Respondeu-me com um sorriso, - Minha querida, não se sai da Biblioteca de Babel, a menos que se tenha encontrado o livro escrito por nós. Como a Biblioteca é interminável, é como encontrar uma agulha num palheiro...!
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. - Mas eu encontrei! Ainda não o escrevi, mas encontrei!, disse quase a chorar de alegria.- A Biblioteca tem todos os livros escritos e por escrever. Se o encontraste, então o teu lugar não é aqui...! A Biblioteca é um lugar de busca...Deixei de o ouvir, no momento em que senti o braço de B a envolver-me a cintura. Na atrapalhação da saída, deixei cair o livro no poço vazio, mas ainda consegui ler a placa branca que se encontrava bem no topo da secretária: - J.L.Borges – Bibliotecário
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29.9.08

MOUNT GAY

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O Dolphin Dance inclinava-se na bolina elegante dos seus cinquenta pés. A costa escarpada da ilha de Bequia aproximava-se velozmente por entre a névoa formada pelas miríades de partículas de água que brincavam ao apanha na rebentação desordenada das ondas. Para trás tinham ficado os Tobago Cays e a Petite Saint Vincent. Para trás tinham ficado igualmente pedaços de todos nós, colados com mar e vento às areias das ilhas desertas, esperando os piratas charmosos da nossa imaginação.
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Atenção ao bordo, gritou o Louis LeClerc da roda de leme de estibordo. Podíamos ver o branco dos olhos das rochas quando avisou com voz decidida, Leme de Ló. As escotas dançaram umas com as outras, a genoa oscilou a princípio, como se ainda não tivesse decidido mudar de bordo, enquanto a vela grande, orgulhosa e vaidosa, com um sacão passou para a amura de bombordo. Com esta manobra, passamos a ver a entrada da baía de Port Elisabeth. Mais um bordo e estávamos de novo em Bequia, para nós a mais querida de todas as ilhas daquela zona das Caraíbas.
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. A noite chegou enquanto preparávamos o jantar a bordo. Era noite de festa e nós estávamos lá para dançar até de madrugada. Era a nossa última noite antes de entregar o barco na baía de Blue Lagoon, em St. Vincent, nosso remoto local de partida, parecia que há muitos séculos atrás.
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. Atracámos o dinghy na amarração do clube de mergulho, e fomos à procura do local da festa. Tinham-nos dito que vinha um músico fabuloso que dava pelo nome de Shadow. A coisa prometia, só faltava saber onde. O Jimmy, natural da ilha, sabia bastante bem onde era a celebração, como viríamos a constatar depois. Mas antes, a caminho do local do ritual dançante, fomos visitando todos os bares, como de fossem estações de uma peregrinação. Em vez da reza do costume, provávamos a Caribe local. E assim fomos subindo a encosta, seguindo o nosso guia casual, até chegarmos ao recinto de jogos de Criquete e Basquetebol. A multidão que ondulava junto ao portão, dizia-nos que era ali. Depois de me porem uma pulseira cheia de hologramas a brilhar, entrei para o recinto já quase cheio. Parecia que estava numa festa de liceu ao ar livre, com a diferença que os alunos eram todos de cor, e só nós e mais um casal de holandeses, a ver pelo escaldão que levavam, é que éramos a dar para o deslavado. Além disso, estavam todos a petiscar frango frito com arroz e feijão, em vez de gelados e pipocas. Onde é que se bebe?, perguntou o LeClerc ao Jimmy.
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Não servem bebidas alcoólicas aqui, só Cocacola, respondeu num sorriso branco pepsodente, para acrescentar, Mas o que o pessoal aqui faz, é ir lá fora comprar uma garrafa de Rum, daquelas de bolso, e depois baptiza a cocacola aqui dentro, discretamente, salientou com um arquear de sobrancelhas multirracial. Olhei para o LeClerc, mas já só lá estava a sombra quádrupla dos projectores.
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Não contive um sorriso quando o vi regressar como se nada fosse. Olhava distraidamente para os polícias que vigiavam o recinto. Do inchaço enorme no bolso dos calções, sobressaía o gargalo de uma garrafa. Comentou que, Já não havia das pequenas, então comprei a do costume, e puxou ligeiramente a garrafa onde se lia em letras douradas, Mount Gay Reserva. Sorriste também, como se fosse a coisa mais natural do mundo e disseste na ocasião, Então vamos lá beber umas cocacolas.
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Já a garrafa ia a meio, quando o Shadow entrou triunfante na sua barba grisalha a pontuar de branco a vestimenta negra. A banda acentuava os riffs de guitarra com a secção de metais, e toda aquela massa de corpos ondulantes vibrava em uníssono. Perdi-te de vista. Navegavas em rumos concêntricos, e ciclicamente vinhas ao meu porto, para te abasteceres de mim e também de Mount Gay.
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. A celebração estava no auge, deixou de haver negros ou brancos no recinto. Havia apenas a música e o mar de corpos que a dançavam. De repente um vento fresco começou a soprar devagarinho, para de seguida se abater sobre nós uma chuvada torrencial, daquelas que encharcam até a alma mais empedernida. Que me lembre, ninguém arredou pé, nem parou de dançar.
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Shadow para finalizar, repetiu em versão extra longa o tema ícone daquela noite, para delírio de todos. A garrafa de Mount Gay foi deitada fora na vergonha de ter ficado vazia, e nós dirigimo-nos cambaleantes para a amarração, onde o dinghy nos esperava pacientemente, para nos levar a uma das estrelas da constelação de Mooring que brilhava por cima de Admiralty Bay. No caminho, descobriste no bolso da camisa ensopada de chuva e suor, o resto de um charro da erva mais mortífera que alguma vez fumáramos, e para acabar o ritual, acendeste-o. Fumaste-o com o LeClerc. Eu já tinha emoções que chegassem e bastava o cheiro para me pôr zonza, e o outro tripulante que nos acompanhava, já estava clinicamente ausente. Caminhava automaticamente, com a ajuda da descida da rampa que nos conduzia à praia, cantarolando baixinho o refrão da última música.
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LeClerc insistia em ser ele a levar o dinghy. Sou quem tem mais tempo de mar, por isso levo eu, dizia com o indicador levantado para acentuar. E eu sou o mais velho, dizias tu não muito convencido. Para piorar a situação apareceram dois tripulantes de um catamaran de charter a pedir-nos boleia para a embarcação. Comecei por dizer que talvez não fosse muito boa ideia, mas os braços abertos do LeClerc desfizeram qualquer dúvida. Ainda hoje penso que o sorriso dele brilhava no escuro. Com os tripulantes do Catamaran a indicar o rumo, foi fácil dar com a embarcação deles. Depois foi por puro acaso que encontrámos a nossa no meio da quantidade de barcos fundeados na baía. Fazias coro com o Louis, ao dizer que, Com um fuminho damos sempre com o barco. E riam-se até se engasgarem, como dois putos contentes e felizes.
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Acostámos na perfeição ao Dolphin Dance, aí o acaso já não teve nada a ver com isso, e acordámos os que tinham ficado a bordo, com as risadas alucinadas de quem não quer fazer barulho. Deu-nos a fome, porque seria?, e fomos comer os restos do jantar. Já não havia cerveja, e quando o drama profundo já se começava a desenhar, eis que surge LeClerc, triunfante com uma garrafa de Mount Gay na mão. Tinha-a guardado para uma emergência, disse no sorriso mais feliz que alguma vez vi.
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No dia seguinte, iniciámos os procedimentos para voltarmos a Portugal. No entanto, acho que ficámos todos em Bequia e continuamos a viver por lá. Regressaram as nossas sombras. Nós ficámos na Terra do Nunca.... .
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(João Pedro, será que respondi à tua pergunta?)

16.9.08

PRAZER EM CONHECER

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A noite era de calor tórrido e abafado. As ventoinhas exibiam as pás difusas, na lentidão do remexer o ar parado. O lobby do hotel, mesmo assim, era um oásis ténue no deserto da noite citadina. O que estava a fazer ali? No meio do Yucatan, numa cidadezinha chamada Valladolid, a lembrar terras de Espanha. Cruzei a perna na impaciência da tua chegada, e fechei os olhos na procura da recordação do teu rosto. Deixares-me sozinha no Parque em frente ao Hotel, com a promessa de voltares ao principio da noite. Tenho que fotografar os Índios que apoiam o Comandante Marcos do Ejército Zapatista de Liberación. Souberam que estávamos aqui, e convidaram-me. É uma oportunidade única.

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E vi-te entrar na camioneta da escola que partiu numa nuvem de poeira, como nos romances. E eu, a personagem feminina, deveria chorar a ver-te partir. Em vez disso fui tomar um banho de imersão bem frio. Não durou muito tempo porque as cucarachas também estavam cheias de calor, e apareceram para se refrescarem. De olhos fechados, imaginando a brisa que me lambia o corpo a intervalos, ouvia o som ritmado das infindáveis canções de mariachis. Abri os olhos, espantada e surpreendida, no momento em que as congas deram lugar a uma voz escondida nas profundezas da mente. cantava, Please allow me to introduce myself / I´m a man of wealth and taste...

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A minha surpresa ainda foi maior, porque à minha frente estava um homem alto, ligeiramente curvado na minha direcção, como se estivesse a fazer uma pequena vénia. Reparei na altura que vestia um fato preto a contrastar com o forro dum vermelho vivo, camisa branca e gravata azul escuro com riscas laranjas, brancas e azul claro. Fiquei presa naquelas riscas hipnóticas e fui despertada pelo fumo acre da cigarrilha cubana.

. Let me please introduce myself / I’m a man of wealth and taste, continuava a canção cada vez mais familiar. Ele sentou-se a meu lado, e num gesto no limite do charmoso, pegou-me delicadamente na mão e simulou o beijo, que embora não tendo existido, (será que não existiu?) teve o condão de me provocar um arrepio que percorreu o braço direito, entrou pelo pescoço e espraiou-se pelo tronco até sair pelo sexo na vibração quase, quase órgásmica. Olhei atónita e confusa para a silhueta em contra luz, que ainda mantinha a minha mão na dele. Senti-lhe os olhos de fogo e tentei descortinar o que haveria dentro deles.

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So if you meet me / Have some courtesy / Have some sympathy, and some taste…, continuava a canção já conhecida, mas não identificada. As congas acentuavam o ritmo e a voz era cada vez mais possessiva, como o olhar que me envolvia e apertava como uma cobra a imobilizar a sua presa. Queria perguntar-lhe o nome, mas não consegui. Em vez disso, vi-te a sorrir. Pensavas em mim e soube isso naquela altura, naquele instante em que senti, ou pensei ouvir uma gargalhada rouca a ecoar bem no fundo de mim mesma. Olhei de novo para o homem que tinha a meu lado, traçara a perna e pusera o braço a contornar-me os ombros nus. Senti um frémito de gozo antecipado e num impulso bem consciente, não posso mentir, desapertei o corpete, botão a botão, e mostrei-lhe os seios sequiosos de luz. Ainda hoje não sei porque o fiz, mas a vontade de abrir o corpete e mostrá-los foi avassaladora.

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Tell me baby, whats my name / Tell me honey, can ya guess my name / Tell me baby, whats my name / I tell you one time, youre to blame / Ooo, Who…., finalizava Mick Jagger. O homem sorriu (será que sorriu?), na minha direcção, levantou-se e pronunciou as únicas palavras de que me lembro, Señorita..., e cruzou a porta do hotel no instante em que entraste. As tuas palavras, quando me viste, assim exposta e meio atordoada, ficaram para sempre gravadas na minha memória, Vinha com uma saudade louca de te beijar os seios... como é que adivinhaste?

Nunca tive a coragem de te dizer. Até hoje!

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(texto publicado no Excitações Primeiro Set)

10.7.08

ROUND MIDNIGHT – POR VOLTA DA MEIA NOITE

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O chapéu de coco fora pousado delicadamente no tapete felpudo. Era preto, na ausência do vermelho em terras de Espanha, contrastando com o creme, a tender para o laranja fim de tarde, do tapete. O chapéu dava-lhe aquele ar de vaudeville travesso que tanto gostava e praticava. Depois, pegou nas meias pretas, enrolou-as cuidadosamente, para de seguida as desdobrar até ao princípio das coxas. Estavam bem justas e contrastavam com a pele rosada do seu corpo nu. Olhou-se de novo ao espelho e franziu ligeiramente a testa na interrogação. Falta qualquer coisa, pensou. Olhou à sua volta e a pequena ruga transformou-se em sorriso. Pegou no colar de pérolas e vestiu-se com ele. Olhou decididamente para a imagem reflectida no espelho, e soube-se bela.
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A objectiva captava um brilho, um glow, que ela não sabia que tinha. Pelo chão, ao lado da carpete felpuda, brilhava uma garrafa de Quinta do Infantado, grandes copos vermelhos, objectivas, lentes, filtros e um ar de doce luxúria. Miles Davis passeava pela sala em sons lânguidos e intimistas, depois vinha Coltrane, o impressionista do jazz, colorindo o ambiente num serpentear de notas, respirações, intenções... E ele, à volta dela, fotografando-a... Ela namorava a objectiva, sentia no corpo nu o calor e o som dos olhares dele. Do fundo da sala, vinha o som de uma voz de mulher. Estava deitada no chão, os longos cabelos negros espalhados nas amplas almofadas vermelhas. Trocava palavras, olhares e pequenas carícias com o homem sentado a seu lado, fumando uma cigarrilha no ar ausente de quem está preste a dizer algo de seminal.
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Olhou para a companheira de longa data e sorriu. Depois, elevou o olhar e abarcou com ele o resto da sala e todos os que lá se encontravam. À sua frente, afundado no cadeirão de pele desbotada, Lawrence Ferlinguetti cofiava a longa barba hirsuta e ia compondo versos para a mulher que atravessa a Piazza “Bocca della Verita”. No canto oposto ao autismo fotográfico de nudez luxuriante, Bill Evans, acompanhado por um Tony Wiliams não muito confortável nas congas, improvisava no piano, estruturas modais, que flirtavam com os acordes de Red Garland que serviam de base aos solos de Miles e Coltrane que enchiam a sala. O som da aparelhagem que revivia o mítico quinteto tinha uma intensidade intimista, o suficiente para deixar sobressair o piano e as congas, sem no entanto abafar a calorosa discussão que ocupava o canto restante. À volta de uma mesa rectangular, o clássico arranjo de dois sofás pequenos e um grande. Num dos sofás pequenos, de costas para os músicos, Timothy Leary depois de ter lambido um selo colorido, impregnado de ácido lisérgico, repetia incessantemente, como se fosse um mantra, “Turn on, Tune in, Drop out”, viajando para outros debates e discussões. No sofá grandalhão, os quase inseparáveis William Burroughs e Allen Ginsberg opinavam sobre o título a dar ao último romance do primeiro. Interzone, acentuava o homem do inseparável chapéu no olhar por detrás da morfina, Naked Lunch, contrapunha o sempre jovem de óculos, do cimo da fama do seu poema épico “Howl”. No sofá restante, um jovem Tom Waitts, com olhar maravilhado, congeminava uma ópera bufa. Veio-lhe à cabeça o nome de Black Rider.
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Jack Kerouac, aclarou a garganta, mas de nada serviu, ninguém o ouvia. Então, decidido a chamar a atenção para o que queria fazer, levantou-se no salto ágil. Pegou no sax alto abandonado nas almofadas coloridas e soprou com força o acorde inicial do Round Midnight, completamente fora de tom. Parecia um momento congelado no tempo. Todos os personagens ficaram parados no eco a desfazer-se, com excepção do par cativo no buraco negro dos olhares. Também foi para eles que Jack recitou o seu último Aiku, acabado de compor. Birds singing / in the dark / -Rainy Dawn.
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Voltou a sentar-se, satisfeito com a receptividade do grupo ao poema e voltando-se para a companheira que lhe estendia um copo de Jack Daniels, perguntou-lhe, Gostas, Eddie? Achas que tem Beat? E sem esperar pela resposta centrou o olhar no corpo nu difuso, para lá da cortina branca de luz e poeira suspensa que entrava pela porta da pequena varanda. O brilho das pérolas brancas misturava-se com o brilho dos pequenos grão de poeira que flutuavam no ar. Os olhares feito imagens, misturavam-se com os sons lânguidos do trompete...
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. Texto escrito em conjunto por Excitações & Laura’sex life
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. ( Reprise do Texto publicado no Excitações - Primeiro Set )
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18.6.08

AGFAPAN QUATROCENTOS

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Pelo brilho do olhar e pelo sorriso a roçar o infantil, ela soube-o feliz quando chegou a casa, trazido pelos últimos raios de luz que teimavam em prolongar o dia, naquela hora suspensa entre dois mundos. Sorriu na expectativa do beijo distraído com que ele a presenteou, servindo de introdução ao discurso excitado e quase ininteligível do que lhe tinha acontecido. Como costumava fazer nessas situações, olhou-o bem nos olhos, beijando-o longamente, até o distrair dele próprio e serem, uma vez mais, aquele todo que os mantinha ainda na linha de partida, após tantos anos de vida em comum.
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Levou um dedo aos lábios em sinal de silêncio, sentou-o confortavelmente no velho sofá vermelho e recolheu-se na cozinha em busca da garrafa de tinto e dos copos de cristal. Para ocasiões especiais, vinho e copos igualmente especiais, pensou no sorriso que lhe aflorou aos olhos, a ponto de quase os cerrar de alegria. Ao fim de todos aqueles anos, ainda sentia as descobertas e triunfos dele como se fossem também dela. Seria que com ele acontecia o mesmo? Gostava de pensar que sim, mas sabia que ele era bem diferente. E ainda bem, pensou para consigo enquanto voltava à sala.
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Então diz lá o que te aconteceu, para chegares a casa como um puto, que conseguiu o último cromo da colecção dos jogadores da bola? E recostou-se para o ouvir, deliciada, enquanto aflorava o cálice de vinho, como se fosse uma preciosidade. Conta lá, repetiu, Mas conta devagarinho, bem devagarinho para eu saborear com prazer.
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Ele sorriu, arqueou as sobrancelhas duas vezes, naquele gesto tão característico dele, e começou por dizer. Lembras-te do meu avô artista gráfico? Aquele que também era fotógrafo e tinha uma litografia? Lembras-te de eu te dizer que quando ele morreu, a litografia estava nas ruas da amargura e os credores levaram tudo, ficando apenas os poucos desenhos originais e álbuns de fotos que ele tinha em casa. Tudo o que estava no local de trabalho, e era quase tudo o que ele tinha feito ao longo da vida, acabou por desaparecer na voragem dos credores. Venderam o que puderam e destruíram tudo o que não tinha valor comercial. Bom, quase tudo, como acabei por descobrir hoje, num golpe de acaso e sorte.
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Descobriste coisas do teu avô? Aonde? Perguntou-lhe cheia de curiosidade. Não vais acreditar, mas foi num leilão, ali para os lados da rua do Loreto, ao pé do Largo do Camões. Ainda existe uma casa muito antiga, que vende jóias e relógios, mas que dantes também era uma Casa de Penhores, como lhe chamavam. As pessoas quando estavam aflitas de dinheiro, empenhavam jóias, relógios, máquinas fotográficas e todo o tipo de coisas que dessem dinheiro. Quando se recompunham financeiramente, iam lá buscar o que tinham vendido e pagavam um juro correspondente. Foste a um leilão numa casa de penhores? Perguntou cada vez mais cheia de curiosidade. Fui, fui, estava interessado numa antigas Hasselblade que iam para venda, juntamente com uma série de tralha bem antiga que ainda estava nos armazéns da loja. Estavam a leiloar tudo. Os donos já estão bem velhos, os filhos estão-se a borrifar para o negócio e segundo consta, têm uma oferta de um banco para fazerem ali mais uma agência. Vi o anúncio e decidi lá ir dar uma vista de olhos.
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Conta mais, conta mais, pediu ela sofregamente, com a curiosidade quase a matar o gato. Ele sorveu deliciado mais um gole de tinto, encheu o peito na pantomima e contou que, Embora eu só estivesse ali para ver se conseguia adquirir uma Hasselblade quinhentos cê, o que acabei por conseguir, uma seis seis com carregador duplo e objectiva Carl Zeiss de oitenta milímetros com dois ponto oito de abertura, despertou-me igualmente a curiosidade, quando anunciaram a venda de um baú fechado a cadeado. Ninguém sabia o que continha, anunciaram divertidos, e só acrescentaram que tinha pertencido a um litógrafo da velha guarda. Quando desvendaram o nome do artista, não acreditei, até perguntei para repetirem, tão incrédulo estava. E depois, desembucha!, quase que gritou. Agora estava excitadíssima para saber o desfecho. E depois?, repetiu. E depois? Olha, disse-lhe com um sorriso tranquilizador, Depois, felizmente que ninguém que ali estava conhecia o nome do meu avô, e acabei por licitar o baú por um preço decente. Está aí! Ainda não o abri, estou mortinho por isso, mas quero partilhar esse momento contigo. Ela levantou-se e beijou-o no meio do desfoque molhado que lhe inundou o espírito.
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Olhou para o velho baú de madeira forrada a cartão pintado, conservando ainda os cantos em latão quase preto e os dois fechos com cadeados. Tens a chave?, perguntou por perguntar, embora já soubesse a resposta. A chave?, Claro que tenho a chave, e mostrou-lhe uma chave inglesa pronta a partir os fechos do baú. Foi com um ruído seco que décadas de esquecimento se evaporaram, prontas a revelar um passado já a começar a ficar bem distante.
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O interior do baú, para além do cheiro característico das coisas velhas e antigas, estava cheio de antigos envelopes de papel fotográfico contendo as mais variadas coisas, desde fotos de família a fotos de estúdio, desde desenhos a lápis de cores, uma das especialidades do avô dele, a aguarelas de paisagens e ilustrações variadas. Bem lá no fundo, ainda tinha alguns utensílios de fotografia já muito em desuso, como dois tanques de revelação em baquelite, filtros e condensadores para um qualquer ampliador, lentes antigas em latão, parafusos roscados vários, latas cinzentas intactas de revelador em pó Promicrol e uma lata redonda de película Agfa a preto e branco, formato trinta e cinco milímetros e quatrocentos Asa, ainda por abrir.
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Sorriu quando o ouviu dizer, que valia a pena experimentar aquele rolo e aqueles reveladores. Ela sabia que ele queria experimentá-los nela, e perguntou se não ia ficar tudo manchado devido à idade que tinham. Respondeu-lhe que era isso mesmo que pretendia, fotografá-la hoje com o material do passado. E na excitação da antecipação, correu para a câmara escura com a caixa de metal. Ainda o ouviu dizer, Lembras-te daquela caixa cheia de cassetes de rolos Agfa vazios, que andei a guardar todos estes anos? Até parece que estava a adivinhar, São os melhores para recarregar com filme virgem.
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Quando ele voltou, com a velha Nikon Éfedois e o mais que antigo flash SunPak montado no tripé com sombrinha, já ela estava desnuda no sofá vermelho de tantas recordações. Como é que sabias? Começou por perguntar, mas desistiu assim que a sentiu no limbo da sua excitação crescente. Como sempre fazia quando a fotografava, pôs o Cd do Coltrane a tocar baladas, e dançaram até à exaustão, coreografias exóticas na cumplicidade dos olhares.
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Por fim, não resistindo ao chamamento da novidade, correu de novo para a câmara escura, a fim de preparar o Promicrol para revelar os rolos. Ela, cansada e feliz, enroscou-se no velho sofá vermelho e adormeceu, na certeza do despertar no sorriso dele. Sabia que ele não ia dormir, já o conhecia o suficiente para saber que só iria ter com ela, quando tivesse revelado os negativos e terminado as provas de contacto.
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Acordou naquele estado em que não se tem consciência do tempo, do espaço e até de nós próprios. Sentia-se mais uma impressão de ser, uma promessa de futuro, do que estar no instante presente. E assim acordou, com o sorriso dele, perplexo e interrogativo ao mesmo tempo, como que a querer dizer-lhe, Queres ver isto? È no mínimo assustador. As fotos não estão muito manchadas, mas a tua imagem está um pouco diferente. Parece que a camada sensível não captou tudo, ouviu-o dizer numa voz mais rouca do que o costume.
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Tirou a cabeça debaixo do cobertor e viu-lhe o olhar surpreso no rosto jovem de cabelos compridos. Com um gesto rápido, ele levantou o cobertor que a cobria e fê-lo voar, até ela ficar novamente nua perante ele. Estás igual às fotos, mas as fotos não estão iguais a ti, gaguejou confuso. Os teus seios estão mais pequenos, quase não tens cabelos púbicos e estás com um corpo de adolescente. O que é que te aconteceu? Isso pergunto eu, respondeu-lhe ela de rajada. Já olhaste para ti? Com os cabelos compridos à anos sessenta e barba quase imberbe? Olha para ti, disse não muito convicta, enquanto acariciava o corpo e o sentia mais jovem, rijo e cheio de promessas. Passou a mão pelo rosto e sentiu-o igualmente mais liso. Levantou-se de rompante e procurou o espelho da sala. Não estava lá, e a sala estava ligeiramente diferente. Só o velho sofá vermelho estava igual, bem, igual não estava, estava mais novo. Era isso, concluiu bem depressa, Tudo estava mais novo. Olhou para ele e suspirou, ou melhor, quase que implorou. O que é que nos aconteceu? Ele, acariciando a novidade dos cabelos compridos, começou por dizer, Não sei, não sei. Fui para a câmara escura fazer o revelador e de seguida pus-me a revelar os rolos. Quando acabei de os lavar e fui ver o que tinha saído, foi com espanto que constatei, mesmo no negativo, que o corpo que tinha fotografado era de uma adolescente. Até pareciam aqueles trabalhos do David Hamilton com fotos eróticas de adolescentes nuas. Confesso que fiquei baralhado e igualmente bastante excitado. Corri para te dizer isto mesmo, até que te vi. Estás linda, desejável, mas és uma criança. Que é que nos aconteceu?
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Vai buscar a caixa metálica do rolo, parece-me que vi qualquer coisa escrita nele, disse-lhe com nervosismo. Deve ter qualquer coisa a ver com tudo isto, acrescentou um pouco insegura. Era mais um palpite do que qualquer réstia de certeza. Enquanto ele foi buscar a caixa, olhou em redor e pareceu-lhe que estava em casa da mãe. Até a micro aparelhagem de Cd tinha desaparecido e em seu lugar brilhava agora uma daquelas telefonias enormes, com um mostrador cheio de números, botões nos lados e várias teclas ao meio. Quando se aproximou para a pôr a trabalhar, ele chegou com a caixa metálica. Na parte de cima dizia simplesmente, AgfaPan Quatrocentos, dez metros. Na parte de baixo, uma tira creme impressa a letras vermelhas dizia, Prazo de Validade - Abril de Mil Novecentos e Setenta e Quatro. Olharam um para o outro, na negativa incrédula.
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Lá fora, um eléctrico chiou na curva apertada do Quartel do Carmo. Pela janela da varanda ela viu de relance o chafariz iluminado, projectando sombras variadas no empedrado. O silêncio voltou ao Largo novamente deserto. Olhou de novo para ele e completou o gesto suspenso, ligando a telefonia. Eram quase onze da noite, Paulo de Carvalho cantava, E Depois do Adeus.
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12.6.08

31.5.08

OLHOS TRISTES

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Chegou a casa decidido a senti-la mais intimamente do que era costume. Ligou a aparelhagem, procurou o cd de Tony Scott, “Music for Yoga Meditation” e pô-lo a tocar ao mesmo tempo que punha os auscultadores. Sentou-se em posição confortável, descansou os braços nas pernas e fechou os olhos. Os sons da cítara, aliados aos do clarinete, transportaram-no para aquela zona conhecida, a que chamava o plano da consciência criadora.
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Aproveitou o primeiro tema, “Prahna”, para a procurar fora das ilusões coloridas da mente vigilante. Deixou as vagas de cores esfumarem-se como nuvens no céu, até desaparecerem no vazio que o começava a preencher. Não ousou perguntar, Onde estás?, e deixou-se transportar nas vibrações harmónicas.
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Encontrou-a no começo do segundo tema,”Shiva”. A princípio, eram apenas uns grandes olhos tristes que pairavam no vazio, sem cabeça ou corpo aparente. Lentamente, observou como a cabeça se formava a partir dum ponto azul, a brilhar na base do pescoço. O corpo tomou forma instantaneamente, não uma forma física comum, mas sim uma forma de luz esbranquiçada. Conseguia distinguir os braços ou o que lhe parecia serem os braços, e decidiu agir. Abriu os seus próprios braços e com um impulso, elevou-se até ela e colou-se ao seu corpo de luz. Ela copiou a sua posição e juntos rodopiaram no vazio consciente.
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Resistiu à tentação de percorrer os vórtices dela, um a um, e apenas observou o vórtice azul que vibrava na base do pescoço. Estava tingido de púrpura e emanava filamentos em direcção aos braços. Sem lhe tocar e usando de imagens pensamento, devolveu a cor azul cyan ao vórtice e eliminou os filamentos. De seguida estendeu os ténues raios azuis pelos ombros, braços e mãos, até os alinhar convergentemente. A imagem que se formou, era composta por várias crianças e alguns adultos. Intuiu a manifestação do querer presente e sem tomar qualquer atitude, afinal estava ali apenas para a sentir, impulsionou-a para cima com força.
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Ela atravessou as últimas notas do terceiro tema, “Samadhi”, como se de nuvens se tratasse. Parou na luz dourada, ao mesmo tempo que a vibração rouca da palavra OM do quarto tema, “Hare Krishna”, a inundava e tingia de energia consciente. Afastou-se para a observar de longe. Os olhos tristes estavam serenos e fechados no sorriso de paz finalmente que a envolvia.
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Lentamente, tomou consciência de outros sons na periferia da atenção, e fez um esforço para retomar o movimento físico ao abrir os olhos. Como sempre lhe acontecia, sentia-se a voltar de muito longe, talvez do local onde os sonhos se transmutam na realidade intuída e nem sempre vivida.
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Levantou-se e desligou a música. O fim de tarde, entrava pela janela aberta, com as primeiras luzes acesas. O cão ladrou na expectativa de um passeio até ao parque. Olhou o silêncio à sua volta, opaco e espesso como o vinho tinto novo. Fez uma festa na cabeça do cão, e com passo decidido, foi abrir uma garrafa de Valado Tinto, pois então!
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21.5.08

PAR4

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Ao cruzar o portão de ferro da Quinta, automaticamente olhou para o lado esquerdo, na direcção do driving range, para medir a visibilidade e notou que se começava a formar uma neblina que esbranquiçava a parte mais afastada do campo. Acelerou na rampa e parou em frente à casa do clube. Estava tudo fechado e não se via vivalma.
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Ao tirar do carro o saco com os ferros foi com satisfação que colocou a pequena gabardina a protegê-los. Ligou o motor eléctrico do carrinho e dirigiu-se para o primeiro buraco.
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A neblina começava a ficar mais espessa mas por enquanto a visibilidade ainda era boa. Do ponto de saída, via nitidamente o lago em frente e o green do primeiro buraco já um pouco branqueado, mas ainda visível. Escolheu uma bola Spalding Pró II de cor laranja, para uma melhor visualização da trajectória, colocou-a no tee com um cuidado já ritual e colocou-se em posição. Olhou fixamente o ponto para onde queria que a bola fosse e de seguida imaginou a trajectória desde a pancada até ao green, passando por cima do lago. O lago já há muito que tinha deixado de ser um problema para ele, embora tenha pago um tributo bem elevado em bolas que lá foram parar, mas agora era um mero obstáculo a ultrapassar. Olhou uma última vez para a bandeira do primeiro buraco e fixou o olhar na bola, ensaiando o swing com um movimento bem lento. Pelo som grave do batimento percebeu logo que era uma boa pancada, enquanto o final do swing conduzia o olhar na direcção da bola que cruzava o lago em direcção à margem oposta. Em cheio no green, com um bocado de sorte ainda faço um birdie, pensou para consigo enquanto atravessava a ponte de madeira. O silêncio que o envolvia, fazia-o sentir-se especial e privilegiado, por estar naquele sítio e àquela hora, fazendo uma das coisas que lhe dava mais prazer. Sentia-se o rei do mundo naquele momento.
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Assim que viu a bola no meio do círculo relvado, voltou à realidade, e começou a estudar a melhor maneira de colocar a bola no buraco só com uma tacada. Agachou-se como de costume para avaliar a rugosidade e o nível do relvado. Um ligeiro efeito para contrariar o declive deve bastar, pensou. Dirigiu-se à bandeira e retirou-a do buraco, depositando-a de seguida na orla do green, reparando que a neblina estava a aumentar. Já não distinguia o tee de saída do primeiro buraco, a visibilidade estendia-se agora até à margem mais afastada do lago. Apressando o passo, sacou o putter, e ensaiou lentamente o movimento, ao mesmo tempo que começava a entoar um refrão duma canção como se fosse um mantra. Não sabia como tinha começado a fazer tal coisa, mas agora era tão natural em si como respirar. Entoou uma vez mais o refrão e bateu com decisão uma pancada quase perfeita. A bola, depois de percorrer um arco, passou a escassos centímetros do buraco, parando a cerca de um palmo de distância. Porra, é preciso ter azar, disse para consigo, enquanto metia a bola displicentemente no buraco com uma pancada leve e seca. Voltou a colocar a bandeira no seu lugar, e dirigiu-se ao buraco dois olhando para trás na direcção do lago. A visibilidade estava a diminuir, já só conseguia distinguir metade do lago.
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O buraco dois era um Par 4, e gostava cada vez mais dele, embora a princípio não fosse assim. Parecia fácil, era uma linha recta, e no entanto as bolas tinham tendência para fazerem uma deriva para a direita em direcção ao outro lago e quando tentava corrigir a deriva, era para a esquerda que ia, para o meio das árvores donde era muito difícil tirá-la. Como em tudo era uma questão de prática e agora, normalmente colocava a bola no eixo, apenas com um deslocamento mínimo.
. Olhou na direcção do farway, e lá em baixo só viu névoa, embora conseguisse distinguir o vulto do green que estava mais acima, enquadrado pela barreira de árvores bastante altas. Uma vez mais, imaginou a trajectória da bola enquanto preparava a pancada, fixou o ponto onde queria que ela caísse e iniciou o swing. Pelo som da pancada ficou a saber que não tinha batido bem, e ao olhar para a bola que se afastava em direcção à parede branca de névoa, percebeu que a trajectória torcia para a direita numa longa curva em direcção ao lago. Quando deixou de ver o ponto laranja que se afastava rapidamente, calculou mentalmente o ponto de impacto e concluiu que não tinha chegado ao lago. Guardou o taco no carrinho e começou a descer a rampa que levava ao farway, embrenhando-se lentamente na neblina que começava a envolver todo o campo.
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Bonito, não vejo um palmo à frente do nariz, ainda me arrisco a ir parar dentro do lago. E onde é que está o raio da bola? Pousou o carrinho e começou a contar os passos que dava numa direcção, depois parava e afastava-se na perpendicular três passos e voltava atrás o mesmo número de passos inicial. Assim ia fazendo um varrimento do terreno em zigue-zague, tendo o carrinho como ponto de partida. Quando ia iniciar a quarta viragem, o olhar foi atraído para uma mancha alaranjada à sua direita. Deu dois passos e exclamou com júbilo, Gotcha, Cockroach! O que no jargão pessoal que usava significava simplesmente, apanhei-te! No entanto preferia usar a frase emblemática do gato do Fat Freddy da banda desenhada dos Freack Brothers. Olhou na direcção do carrinho e ainda conseguiu ver o seu vulto, de seguida despiu o blusão e marcou o sítio. Quando voltou com o ferro número sete na mão, tremia ligeiramente e apanhou rapidamente o blusão para se aquecer. No entusiasmo da situação esquecera-se que estava bastante frio, Tá um briol que faz favor..., pensou para consigo, E eu aqui perdido neste nevoeiro a tentar acertar num buraco que nem se vê a bandeira. Olhou para a mancha escura mais acima do ponto onde se encontrava e concluiu que seriam as árvores que rodeavam o green. Era para ali que tinha que bater a bola, bastava-lhe fechar os olhos e imaginar o local, já que o conhecia tão bem. Vá lá, tive sorte, a bola caiu em cima de umas raízes e está um pouco elevada em relação à relva, mesmo a pedir uma pancada.
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Preparou o swing, fez uma curta pausa e quando ia iniciar o movimento descendente, pareceu-lhe ouvir um clamor, como se umas dezenas de vozes gritassem ou cantassem em uníssono. Parou e olhou em volta, mas o silêncio que o envolvia fê-lo franzir a testa. Que raio? pensou, enquanto se posicionava outra vez para bater a bola. Antes de iniciar de novo o swing, fechou os olhos e concentrou-se nos sons à sua volta, mas só distinguia o vento que soprava leve. No preciso momento em que a ponta do ferro lhe tocou as costas antes de começar o swing, explodiu-lhe de novo na cabeça o clamor de muitas vozes. Ficou parado e quieto com o movimento suspenso na interrogação e o coração a bater mais rápido. Lembrou-se dos tempos em que cantavam a Internacional em altos gritos, levados pelo entusiasmo da revolução, mas o som que ouvira não lhe parecia de júbilo mas sim de aflição, e também não era a Internacional, disso tinha a certeza. Mas agora a situação era diferente, parecia-lhe que o som que ouvira não era exterior a si, mas interior. Surgira-lhe algures na zona por trás dos ouvidos e fora acompanhado por um desconforto na zona do estômago, muito parecido com os engulhos que experimentava por vezes aquando de recordações induzidas por uma música específica. Agora ouço vozes, costumava ser música ou um ou outro pensamento obsessivo. Bom, com vozes ou não, vamos lá bater a bola porque já estou completamente encharcado com toda esta humidade, disse para consigo. Mas desta vez não chegou a preparar o movimento, porque no preciso momento em que acabou o pensamento, outro se formou bem no centro da cabeça e dizia, Olha para nós. O pensamento ficou uns instantes a pairar e desapareceu. Começou a não achar graça nenhuma a tudo o que lhe estava a acontecer. Olha para nós? nós quem? O ambiente em que se encontrava, sozinho e em silêncio no meio daquele limbo esbranquiçado, era propício a histórias de espíritos, mas ele não acreditava em nada disso, era um céptico empedernido e cultivava essa faceta com muito carinho. No entanto, naquele instante e naquele lugar branco, quase que suspenso no vazio, não conseguiu evitar um calafrio, e não era de frio mas sim de desconforto perante algo do qual não fazia a mais pequena ideia. Semicerrou os olhos e olhou à sua volta lentamente, perscrutando as sombras e procurando vultos ou padrões para lá da neblina. Está aí alguém? Gritou, mais para ganhar confiança do que para obter qualquer resposta. Sabia que não ia ter resposta alguma e pensou que se alguém lhe respondesse, apanhava um valente susto. Olha para nós? Devo estar a enlouquecer, finalmente.
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Sentiu uma ligeira brisa a roçar-lhe a face no preciso momento em que outro pensamento se começou a formar. Desta vez a sensação era agradável e dizia apenas, Para baixo. O que queria aquilo dizer? Para baixo? interrogou-se de novo, para baixo o quê? Olha para nós? Para baixo? Seria isso? E instintivamente olhou para baixo na direcção dos pés e da bola laranja em cima das raízes.
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Não achou nada de estranho nos pés, aparte estarem um pouco sujos de lama, a bola continuava em cima das raízes, a relva envolvente era como sempre fora, verde e macia. Olhou mais de perto para a bola e a visão desfocou ligeiramente, embora lhe parecesse ver um brilho fugaz junto às raízes. Os óculos, precisava deles para ver mais ao pé, onde estariam? Na porra do carro, pensou. Automaticamente juntou o indicador e o polegar dobrado de forma a deixar apenas uma pequena abertura por onde espreitar, assim conseguia ver a imagem focada e nítida através do diafragma improvisado. Era um truque que usava quando não tinha óculos por perto e também pessoas, normalmente ficavam a olhar para ele com aquele ar desconfiado e estúpido, típico de quem não entende o que se está a passar.
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Assim que espreitou pelo buraco dos dedos, a respiração parou momentaneamente, como que para não perturbar o que estava observando. As raízes não eram raízes, mas sim pequenas hastes metálicas que sustentavam a bola alaranjada cerca de um centímetro acima da relva, e reluziam com um brilho metálico e molhado. Na ponta abriam e formavam um círculo que estava em contacto com a relva. Olhou melhor e contou sete varões que saíam da superfície da bola. A superfície alaranjada era na realidade bem lisa, sem qualquer concavidade típica das bolas de golfe actuais, e também aparentava ser de origem metálica, embora não conseguisse distinguir qualquer detalhe ou relevo, apenas uma luminosidade baça que emanava da sua superfície. Olhou ao redor e não viu nada escrito, nem Spalding, nem 1 PRO II. Definitivamente não era a sua bola de golfe, nem tão-pouco era uma bola de golfe. Recusou-se a pensar o óbvio e não resistiu a tocar-lhe muito ao de leve. Sabia que era uma imprudência enorme tocar naquele objecto, mas não resistiu.
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No momento em que o dedo tocou na superfície da bola alaranjada, todo o seu ser foi sacudido por uma onda de prazer bastante agradável, e quando começou a esboçar um sorriso, o interior da cabeça encheu-se de novo do coro de vozes em uníssono, agora expressando júbilo e contentamento, em contraste com a angústia que sentira momentos antes. Existem seres dentro desta bola que de uma maneira qualquer comunicam comigo, mas devem ser minúsculos. O coro de vozes parece ser de umas boas dezenas de seres, pensou para consigo. Franziu mais o olho na esperança de visualizar algum detalhe na superfície da bola, uma porta ou janela, mas nada, a superfície era bem lisa. Aproximou de novo o dedo e ao tocar a bola sentiu a sensação agradável ao mesmo tempo que uma ideia nova se formava bem no centro geométrico da sua cabeça, Obrigado. Desta vez o pensamento tinha cor, e a cor era de um dourado ofuscante, pelo menos era a sensação que tinha. Sentiu a superfície da bola a começar a vibrar e instintivamente tirou a mão. A cor laranja começou a tender para o lilás e a bola começou a elevar-se do solo até ficar ao nível dos olhos. Os pés de apoio ou hastes, as famosas raízes, começaram a recolher até não ficar vestígio algum delas. A bola metálica afastou-se com um movimento lento, parando depois abruptamente. Ele aproximou-se e a bola afastou-se de novo, parando mais à frente. Queres que eu te siga, não é? E começou a segui-la assim que se moveu.
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A névoa continuava bem espessa e deu uns poucos de passos hesitantes e cautelosos até que a bola parou e começou a descer em direcção ao chão. Seguiu-a com o olhar e para seu espanto viu outra bola alaranjada na relva molhada, bem junto aos seus pés. Será a minha bola ou será outra coisa igual a esta? Endireitou-se e no momento em que olhou de frente para a bola, agora de cor azulada, uma luz branca encheu-lhe o campo de visão enquanto a palavra Adeus piscou por uma fracção de segundo no limiar do consciente e desvaneceu-se no preciso instante em que a bola se desmaterializou.
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Olhou para a bola alaranjada e sem saber porquê, ajoelhou-se para ver se era a sua bola, Spalding 1 Pro II, naquele que passaria a ser um gesto intuitivo e compulsivo que passaria a fazer, fosse num simples treino ou num torneio, sempre que encontrava a bola que julgava ser a sua, e sempre se interrogaria do porquê de tal acto. Após verificar que era a sua bola, vislumbrou o green através da neblina que começava a ficar menos espessa, concentrou aquele momento no movimento circular que bateu a bola em direcção ao monte verde que ficava a seguir à mancha de areia. Em cheio no green, com um bocado de sorte ainda faço um birdie...
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15.5.08

FILHO DA MÃE DO ARTURO PEREZ-REVERTE

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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Leu na página trezentos e quarenta e um, oitava linha a contar de cima, do romance que estava a ler, O Cemitério Dos Barcos Sem Nome. Finalmente encontrava uma frase que traduzia o seu estado de espírito sempre que pensava nela. Por isso evitava falar-lhe. Por isso evitava escrever-lhe. Por isso evitava pensar nela.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Por vezes havia uma linha que valia pelo livro todo. Esta era uma delas, pensou. Filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte. Com esta linha passava, na sua consideração, à frente do Jorge Luís Borges. E gostava do Borges como se fosse a sua sombra. Por vezes andamos uma vida inteira a bater com a cabeça nas paredes, e a chave para a porta de saída da sala em que nos encontramos, está numa simples linha escrita por outrem. O romance até que não era nada de outro mundo, aparte o facto de estar escrito por alguém que gosta do mar, que gosta de sentir o vento na enxárcia e se sente desconfortável quando tem a costa a sotavento.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Efectivamente, era esse sentimento que sempre o pusera desconfortável. Tornava-se claro para ele que tudo tinha sido um equívoco bem desagradável. Amava-a estupidamente, pensou. Porquê? Vá lá saber-se? Alguma vez foi bem-vindo? Alguma vez seria bem-vindo?
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Que é que este agora quer? Ouvira uma vez na fracção de segundo que antecedeu o telefonema por atender. A mensagem era clara como a água na baía de Karavostasi. Só não entende quem não quer! Fizera loucuras por ela, sofrera e chorara como um cão louco na ausência do dono. O amor tornara-se doença. Doença, porque não era retribuído. O amor nunca pode ser unilateral, pensou, senão apodrece e transforma-se em algo doente.
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Não quero mais amar-te, porque sei que não sou bem-vindo, ouviu no seu interior. Se o fosse, a vida sorriria mais, a nostalgia que vem com a solidão não faria sentido e a própria solidão deixaria de ser. Sentia amargura por ter sido tão estúpido e ingénuo. Provavelmente para ela, ele tinha sido mais um, mais uma experiência que não tinha resultado, ou mais uma desilusão que o ser perfeito que ela pensava que era, tivera no decurso da sua vida iniciática em direcção ao ser sublime. Era isso, tinha falhado na encarnação do ser perfeito, concluiu com alguma ironia.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Mais uma vez leu a linha que luzia na página trezentos e cinquenta e um, oitava linha a contar de cima e fechou o livro. Sentia-se como se tivesse lido todos os livros escritos e por escrever. Lembrou-se novamente de Borges e da Biblioteca de Babel. Sempre Borges e o duplo. Sempre a comunhão com o absurdo da existência. Recordou uma vez mais aquele amor que se tornava cada vez mais distante e num último beijo dizia-lhe, Quando sentires que sou bem-vindo, e não apenas tolerado, chama-me no comprimento de onda do amor que tudo purifica. Chama-me e nesse preciso instante verás que estou a teu lado. Serás sempre bem vinda!
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Filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte, tinha que lhe escrever a agradecer a linha que tinha escrito para ele. Não se conheciam, mas ele sabia que aquela linha era para ele, só podia.
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8.5.08

O DEMÓNIO DE DAGUERRE - (Reprise)

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O fim de tarde era nosso, e a luz que entrava pela janela do estúdio também nos pertencia. Lá fora a tempestade, cá dentro a música cálida de quente do quarteto de jazz de Sophie Milman. A preguiça do desejo, é algo que me excita devagarinho. Quero-te, mas não é já. Quero-te daqui a pouco, quando a preguiça se transforma em lascívia e o olhar transpira carícias antecipadas.
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Preparas a máquina e os rolos com uma precisão quase demente. O teu fotómetro mede a luz ambiente, perscrutando as penumbras e as zonas de luz como se fosse uma sonda espacial à procura de vida num planeta estranho. A tempestade aproxima-se e a Sophie canta, I feel pretty / Oh so pretty / I feel pretty and witty and gay...Olhas para mim no olhar hesitante do desejo adiado. Vence o demónio de Daguerre. Sorris para mim e dizes para me descontrair.

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Alargo a preguiça e começo a desnudar-me. Sabe-me bem sentir os seios na nudez repentina. Começo a ficar molhada de antecipação. Sabes que fotografar-me é como fazer amor comigo. Cada click uma penetração, suave por vezes, bem funda por outras. I feel charming/Oh so charming/It's alarming how charming I feel/And so pretty/That I hardly can believe I'm real., continua a voz que dança na luz difusa que ainda ilumina o estúdio. Um relâmpago, antecipando o trovão ainda longe, acende o tecto como se estivesses a usar o flash. Não evito um arrepio. Não é do frio, deve ser da electricidade suspensa no ar cada vez mais húmido do dia que finda. Parece que o dia chora por se ir embora.
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Mudas o rolo para um mais sensível. Sei que queres apanhar a luz e sombra da tempestade que substitui o teu flash. Cantas em uníssono, Such a pretty face / Such a pretty dress / Such a pretty smile / Such a pretty me! E disparas o obturador no preciso momento em que o relâmpago me inunda de luz, no ribombar do trovão em simultâneo.
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Sinto os mamilos a ficarem rijos, a nuca na tontura inversa e o meu sexo quase orgásmico a diluir-se no escuro que me começa a envolver. Deixo de te ver e por fim deixo de me sentir. Apenas te ouço, bem longe, muito longe. E sei que me procuras...

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Começo por rejeitar a ideia de estar dentro da Nikon F2S, impressa no rolo de 35mm como mais uma imagem capturada ao meu ser real. O negro é total, mas sinto o movimento e os sons no exterior. E acabo por aceitar a irrealidade da situação. Sou uma mera impressão na prata que reveste a película perfurada. Lembro-me de em tempos te ter pedido para me revelares o desejo, e tento chorar, mas não consigo. As imagens não choram.

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Sinto-me enrolar em mim, como um feto, para de seguida me mergulhares num líquido morno e viscoso. Na minha realidade complanar, começo a sentir a transformação química que me aproxima do teu mundo. Sinto a luz no momento em que mergulho no turbilhão da água corrente. É quase um nascimento, não consigo gritar mas entendo a tua excitação bem próxima de mim.

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A luz branca queima-me o corpo em negativo, e percebo que me projectas para o papel sensível colado na parede. Ajustas o foco e o meu corpo de luz oscila no foco. Lembro-me daquele filme do Woody Allen em que um dos personagens aparece sempre “out of focus” e peço-te, imploro-te até, para que me não desfoques. Eu sei que não serve de nada, mas peço-te na mesma.

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Finalmente a minha imagem é projectada através dos filtros de cor e impressiono o papel na parede. Volto a ser uma imagem virtual, uma promessa de ser, e novamente espero que me reveles. Aproximas-te com uma esponja e começas a revelar-me por fim. Primeiro a cabeça, depois, demoras-te um pouco nostalgicamente nos seios e por fim o resto do meu corpo arrancado ao fim do dia quase perfeito. A imagem acabou de se formar mas ainda continua presa ao papel. Grito-te no desespero para me tornares real. A tua mão começa por me acariciar os seios planos, continua desenhando o contorno do meu corpo, pára por instantes no sexo e volta aos seios. Colas-te a mim na saudade, e por fim beijas-me os lábios salgados da revelação. E tornas-me real no relâmpago inverso da paixão de nós. Agora posso chorar de novo!
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(texto editado no Excitações - Primeiro Set)
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29.4.08

MAR DE NUVENS

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Todas as manhãs a rotina era a primeira a levantar-se e a tomar o pequeno-almoço. Já confortada decidia-se a iniciar o dia. Às vezes ainda pensava iniciá-lo de maneira diferente, mas depois decidia proceder da maneira igual ao dia anterior, ou não fosse ela a rotina.

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Assim, começou por acordar a mãe bem cedo, ainda antes dos outros. Depois foi acordar o pai com o barulho da água a correr para o duche, e por fim lembrou a mãe de chamar o filho, primeiro suavemente, depois mais energicamente, e por último destapando-o com a lengalenga do costume, O teu pai já está vestido e se queres boleia para o liceu, levanta-te já. Enquanto a rotina tomava o segundo pequeno-almoço na companhia do pai, este preparava-se para sair, ao mesmo tempo que voltava a cabeça para o corredor e dizia em voz alta, Vou sair daqui a cinco minutos, se queres boleia, despacha-te.

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Tinha acabado de se vestir, quando ouviu a porta da entrada bater com força. Alguém tinha que arranjar aquela fechadura, pensou, enquanto ouvia o som familiar do motor da carrinha Opel, a começar a trabalhar. Ia a sair quando reparou que estava descalço. Voltou atrás, ao mesmo tempo que o som familiar da carrinha, se afastava em direcção à calçada. Resignado, deu um beijo à mãe, apanhou o velho bornal de lona da tropa com os livros e cadernos, juntamente com o chapéu de abas largas que tinha a mania de usar, e saiu a correr em direcção ao Largo da Boa – Hora para apanhar um eléctrico. A linha de eléctrico e o caminho para o liceu eram os mesmos, por isso não perdia tempo em ir por ali.

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Teve sorte e ainda foi a tempo de saltar para a traseira dum, agarrando-se à grade do lado exterior. O eléctrico ia cheio e assim era uma maneira de o apanhar. Os tempos de andar na pendura já lá iam, mas por vezes justificava-se, como naquele dia. Nem tinha que se esconder, o eléctrico ia tão cheio que o revisor nem se conseguia mexer lá dentro, quanto mais aproximar-se da porta. Olhou para o relógio e chegou à conclusão que talvez chegasse dentro da tolerância dos cinco minutos, senão estava feito, era mais uma falta a juntar a algumas que já tinha.

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Ia a chegar ao Largo do Rio Seco, quando viu de relance um carro com riscas azuis. A bófia, deixou escapar no sobressalto, enquanto saltava instintivamente do eléctrico em andamento. Não reparou no VW carocha, que entretanto decidira ultrapassar o eléctrico, e sem saber bem o que lhe estava a acontecer, começou por ouvir um som abafado mesmo por baixo dele, a janela do eléctrico passou-lhe de repente no canto da visão, enquanto o azul do céu tendia para a casa em ruínas que lhe estava à esquerda, e a sua própria sombra aproximava-se rapidamente de si. Caiu com a rapidez com que se levantou. Todos olhavam para ele, estáticos, como se estivessem congelados e ele fosse o único animado de vida. A bófia, lembrou-se, e desatou a correr em direcção ao túnel do Rio Seco, no instante em que o condutor do carocha saía do carro, ainda sem perceber bem o que se tinha passado.

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Saiu do túnel quando viu o carro com riscas azuis a subir a calçada, e sentiu uma dor alaranjada na anca esquerda. Doía-lhe o corpo mas não tinha nada partido, aparentemente. E agora?, o melhor é entrar no Liceu pela porta do lado sul, é mais longe mas evito ir pela calçada, pensou enquanto se punha a caminho, coxeando ligeiramente. Começou a conferir se não tinha perdido nada, mas estava lá tudo. Quando tinha ido pelo ar agarrou bem o bornal e o chapéu. Também não tinha mais nada para me agarrar, pensou a sorrir enquanto apertava o passo pela Travessa do Giestal acima.

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Entrou sozinho pelo portão Sul, um enorme portão de ferro, desproporcionado em relação à quantidade de pessoas que por ele entravam diariamente. Igualmente fora de escala, era a escadaria que dava directamente para a entrada nobre do liceu. Era como, se a mesma, tivesse sido projectada para acolher um visitante ilustre vindo do rio, Talvez o D. Sebastião, ironizou.

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Não entrou pela secretaria, já tinha passado o tempo dos cinco minutos de tolerância e não queria encontrar nenhum dos porteiros Pides que por ali já deviam andar. Contornou pela direita o edifício, e dirigiu-se ao recreio fechado. Lembrou-se de quando era um miúdo e lá tinha entrado pela primeira vez, naquela altura não tinha portas de madeira e vidro. Era um espaço aberto e frio, só confortável no verão. Já tinham passado alguns anos, suspirou na memória recente. Entrou e pareceu-lhe totalmente vazio. Passeou o olhar distraidamente, e reparou no halo de luz ténue que emanava do vulto sentado ao canto do pátio.

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Curioso, dirigiu-se para lá. Parou quando ela levantou a cabeça e olhou para ele com um sorriso, continuando de seguida a escrevinhar no caderno aberto na mesa enorme. Quando ela sorrira, a luz tinha aumentado. Piscou os olhos como se estivesse encandeado e quisesse ver melhor. Provavelmente uma nuvem que descobriu o sol, pensou. No entanto continuava parado no mesmo sítio, sentindo-se um pouco ridículo. Só lá estavam os dois, ela escrevia e ele fazia figura de parvo. A anca começou a doer-lhe de novo, era uma dor latejante, agora a tender para o roxo. O roxo lembrou-lhe o manto do Senhor dos Passos, uma das figuras que saíam para a rua nas procissões da Igreja. O tempo tinha-se fundido com o espaço, e tudo se passava a um ritmo bem lento. Ela continuava a escrever sem lhe dar muita atenção e ele já estava no ponto em que ouvia distintamente todos os ruídos que o envolviam. Antes de começar a ter pena de si próprio avançou em direcção àquela luz que o intrigava e ouviu-se a dizer, Olá, que estás a fazer? respondendo mentalmente para si próprio, A escrever que está um estúpido a perguntar-me o que estou a fazer.

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Ela voltou a sorrir e disse-lhe que, Estou a acabar um poema sobre o mar cheio de nuvens, queres ouvir? Quando acabou, e lhe perguntou se tinha gostado, ele demorou um pouco a responder que sim. Demorou o tempo necessário para descer das nuvens e mergulhar no mar da razão, para fazer sinal com a cabeça, e dizer uns sons meio desconexos. Reparou também que a dor na anca tinha desaparecido. Sentindo-se bastante confortável arriscou um, Sabes, eu às vezes também faço uns poemas, só que nunca os mostrei a ninguém. Nem aos teus amigos? perguntou-lhe ela no sorriso cada vez mais luminoso. Os meus amigos não gostam de poesia, acham que é uma coisa feminina. São uns toscos, desabafou. E tens aí alguma para se ver? Não tenho, mas posso trazer-te amanhã. Tá bem! Passamos a encontrarmo-nos aqui neste lugar e trocamos poemas. Que achas? Ficou com o sim entalado na garganta, enquanto ela se despedia com um até amanhã.

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Nem tinha reparado que já tinha tocado para a segunda aula da manhã. Subiu as escadas a correr, e ainda entrou a tempo da aula de Organização Política com o Jaiminho.

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. (para ti, meu querido B, uma estória do tempo da outra senhora.)

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17.4.08

CAMINHOS CAMINHADOS

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Tinha o hábito de passear por ali. Começou por um acaso e por qualquer razão desconhecida passava sempre por ali. Começava longe, sem rumo definido e sem pensar. Ia vagueando por caminhos e veredas, por estradas e atalhos, e sem se aperceber, acabava sempre a passar por ali.
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As estações mudavam, a palete de cores da paisagem mudava, a temperatura mudava e com ela as vestes que levava para os passeios. Lembrava-se daquela vez que apanhara uma chuvada imensa, daquelas que já não nos importamos que esteja a chover ou a fazer frio, daquelas em que nos deixamos de sentir. Lembrava-se, porque tinha começado a chover quando ali chegara. Porque é que aquele lugar era tão especial? Seria do mar? Ao longo dos passeios passava por sítios que eram muito mais potentes e cativantes. O resto do percurso teria alguma coisa de especial? Até era um pouco desinteressante, banal e saloio. Por aí também não ia lá, pensou. Chegou a fazer pesquisa na Net e em alguns livros sobre aquele sítio. Aparte uma ou outra curiosidade histórica, uma ou outra adega famosa em tempos de vinhos que já se beberam, não havia mais nada de interessante. No entanto continuava incessantemente a ser atraído para ali. Desistiu de lutar e abandonou-se ao sei lá.
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Uma manhã, daquelas de partir pedras com o frio que fazia, saiu como de costume bem cedo e decidiu ir na direcção oposta ao percurso usual. Sentiu uma espécie de libertação e começou a ficar ligeiramente eufórico. Subiu a serra e enveredou por caminhos nunca antes trilhados. Entrou no nevoeiro e perdeu-se, saboreando aquele limbo silencioso e húmido. Vagueou em silêncio, perscrutando sons e sombras do inconsciente sonhador. Pelo carreiro a ficar cada vez mais pedregoso, percebeu que se estava a aproximar dum local habitado. O carreiro fez-se rua, a rua levou-o à estrada e a estrada desembocou no atalho. Reconheceu a casa, olhou bem para se certificar que não era engano, causado pela pouca visibilidade, e chegou à conclusão, um pouco incrédula, que estava de novo ali.
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Foi então que a viu sair de casa, difusa e etérea como um anjo. Flutuava na névoa que tudo envolvia e brilhava como uma gota de orvalho. Percebeu o que o atraía àquele lugar, o que o levara vezes sem conta até ali. O seu olhar cruzou-se fugazmente com o dela e sentiu uma queimadura na parte de trás do crânio. Não teve tempo para fazer mais nada, só o instante para se desviar do carro, que saiu apressado pelo portão da casa em direcção à estrada. Ainda sentiu, ou pensou sentir, um leve perfume a esbater-se no ar enevoado. E ficou ali, parado no tempo e no espaço, ali onde sempre quisera estar.
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Continuou a dar os seus passeios e continuou a passar sempre por ali. A diferença residia no facto de agora deixar sempre na caixa do correio da casa uma flor, ou um pequeno ramo de flores que apanhava no caminho. Nunca mais a tinha visto mas deixava sempre uma flor. Por vezes imaginava que era surpreendido a colocar a flor ou o ramo de flores na caixa do correio e corava. Se tal acontecesse, não saberia como reagir.
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Um dia, um amigo que por vezes passeava com ele, perguntou-lhe porque é que punha sempre uma flor ou um ramo de flores naquela caixa do correio, e ele respondeu-lhe simplesmente, É porque sim! O amigo nunca mais lhe perguntou sobre aquilo. Sempre que passavam por ali, e era quase sempre, o amigo já nem olhava. Era como se fosse um ritual.
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Até que um dia, passados alguns anos, passeavam como sempre pela serra e não passaram por ali. Continuaram no trilho sem desvios e com passo decidido, e ele não se desviou do caminho nem cumpriu o ritual do costume, pôr uma flor na caixa do correio. Seguiu decidido a caminho do cabo sem olhar uma única vez para trás. O amigo começou a ficar intrigado, olhava para ele a tentar descortinar o que se passava, mas ele não dava hipóteses, seguia em frente com passo decidido e vigoroso. O amigo não aguentou mais, agarrou-lhe o braço para o forçar a encará-lo de frente, e perguntou, Porque é que não passas mais ali, nem pões a flor ou o ramo de flores que costumas pôr na caixa do correio? Ele olhou para o amigo, depois olhou longe em direcção ao cabo e respondeu, É porque sim!
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11.4.08

A CHUVA MELANCÓLICA

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Garrett imaginou apanhá-la, reproduzindo versos do tal Pessoa, mas a rapariga foi abraçada, lambida e beijada mil vezes pela gente teimosa como gotas de água em direcção aos cafés, concerteza cheios de batatas a fritar em óleo.
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Não era mau, andar ausente no meio da rua com seu livro. Estava preocupada por ser chapéu de chuva, e só lhe restou continuar devido à chuva ser fria.
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Deixou-se encharcar, sem nenhum som, ou, talvez com todos, como os que rebentavam ao mesmo tempo o chão empedrado e ampliado da Baixa.
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Desconstrução caótica do Texto “Rapariga Melancólica em direcção à Baixa”, editado por Abssinto em 09-04-08 (As mesmas palavras numa composição diferente)
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8.4.08

ALL THAT JAZZ

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A sala contorcia-se nos tons de vermelho e preto, como que procurando o foco de luz branca que lhe daria a razão de ser. Ainda faltavam alguns minutos para o show must go on, e talvez por isso se sentisse um certo nervosismo no ar, ou seria a mistura dos cheiros perfumados de sábado à noite a fumarem o cigarro proibido? Fosse como fosse, escolhemos uma mesa bem em cima do palco, salpicado pelas eternas bolinhas de luz branca, na sua incansável orbita circular.
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Um empregado de mesa saído de tempos já idos, serviu as bebidas de circunstância e recostámo-nos na espera. O antigo cabaret, rejuvenescido nas memórias de glórias antigas, ainda ostenta aquele ar decadente chic, tão acarinhado nos tempos que correm. Já não aparecem por lá reis de Espanha, ombreando com Baptistas Bastos ébrios de boémia parquemaérista, nem os novos-ricos nos seus fatos deslumbrados no champanhe do alterne. São outros tempos, modernos e Catitas, abrilhantados pelos artistas do ano dois mil. Até apetece dizer Ena Pá.
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Olhei-te nos olhos, e estavas ausente. Flutuavas na expectativa do espectáculo surpresa, talvez pensando que estarias melhor umas portas mais acima. Acariciaste-me as coxas no gesto furtivo e espalhaste o teu sorriso na minha nudez interior. Os encarnados e pretos desapareceram no frémito clandestino.
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A decadência de uma miss com cabelos no peito rapado, fez-me relembrar o glamour das dragqueens wharolianas. Volta Candy Darling, eu perdoo-te tudo, mas por favor, espalha o teu glamour desaparecido. Era pena o glamour não se vender em frasquinhos, como o perfume. Estava a ser mazinha, pensei cá para comigo. No fundo, era um artista português. Support your local artist, pensei, ou seria dealler?
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A tua mão é que continuava dançando o tango proibido, e no entanto querido. Do tango passou ao foxtrot, e tive que fugir de ti quando o artista de musicall me olhou nos olhos, seria que me via?, e começou a cantar o êxito passado, reconhecido por mim e ignorado totalmente por ti. Todos na sala cantavam o refrão, menos tu e um ou dois envergonhados. Não cantavas porque não sabias. Era a primeira vez que o ouvias e sorrias para mim. Estavas-te nas tintas para o artista de musicall, para a canção do mistergay, e para o Maxime. Senti-me bem especial naquele momento.
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Quando voltámos a casa, enquanto me despia na penumbra, tu remexias febrilmente no armário dos Cds. Emergiste triunfante com um Cd na mão. Quando o puseste a tocar, compreendi de imediato o que me querias dizer.
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Temo-nos a nós no desejo imenso. O resto, o que sobra do nosso olhar sôfrego e terno, não é mais do que, All That Jazz.
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28.3.08

OS TIGRES DE BORGES

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Havia já alguns dias que não se sentia lá muito bem. Vistas bem as coisas, não eram dias, talvez semanas ou meses, ou mesmo anos, não sabia bem. Era uma daquelas coisas que vinha de mansinho, sem aviso nem reparo, e que aos poucos e poucos ia mudando o seu dia à dia, sem que disso se apercebesse. Mas que não se sentia lá muito bem era um facto! O porquê já era outra coisa, pensava, sem saber por onde começar.
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Estaria diferente? Com certeza que estava, mas isso não era motivo para se sentir mal, antes pelo contrário! Sempre se sentira bem com as mudanças, achava que elas traziam sempre uma lufada de ar fresco ao seu quotidiano. Sempre fora assim. Mesmo quando as mudanças eram radicais, ao fim de pouco tempo começava a ler a nova direcção da corrente do rio, deixava-se levar e começava a navegar nas novas águas com entusiasmo redobrado. Estava diferente, mas isso era um facto normal nela, sempre em mudança como as águas dum rio, gostava de pensar. Só que desta vez estava diferente, mas não se sentia lá muito bem. Desta vez o ditado Pós Moderno que gostava de citar assentava-lhe que nem uma luva, Jesus Cristo morreu, Karl Marx morreu, e eu própria não me sinto lá muito bem!
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Começou por fazer uma busca meticulosa por todos os aspectos da sua vida, numa tentativa de perceber o que é que estava a provocar aquele mal-estar generalizado. Tremeu um pouco ao pensar que estava a agir como se fosse um daqueles gurus new age que desprezava, a aplicar um chavão, um lugar comum, para resolver a náusea em que estava o seu caminhar desperto. Pensou também que não tinha alternativa, se não eram os gurus new age, eram os gurus old age, andavam todos aos papéis, a limpar a sala e a despejar os cinzeiros. Ás vezes acertavam, outras vezes não, e o mexilhão que se lixasse, relembrou no velho ditado que dizia, Quando a água bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão!
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Decidiu meter ombros à tarefa e descobrir o que a fazia sentir-se não lá muito bem no seu dia a dia, no seu semana a semana, ou até quem sabe, no seu ano a ano. Decidida estava, e decidida começou a vasculhar a espiral de acontecimentos que a envolvia numa teia quase infinita de causa acção efeito causa. Como seria óbvio, recusou qualquer abordagem esotérica, tipo karma, o príncipe da causa efeito. Se fosse por aí, tudo poderia fazer sentido, era só uma questão de querer para que sim! Qualquer argumento de filme faz sentido, basta nós o querermos, pensava. Por aí não iria, definitivamente. Alem disso, tinha vários amigos que tinham enlouquecido ao irem por aí. E ela não queria que lhe acontecesse o mesmo.
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Tu és a actriz principal do filme que é a tua vida, veio-lhe à memória. Mais um chavão era do aquário, mas que lhe fazia algum sentido. Pois é, der por onde der sou sempre eu a boa ou a má da fita, Tudo gira à minha volta porque a minha atenção está cá dentro. Eu sou? Bom, se penso que sou, serei qualquer coisa, pelo menos sou eu, embora me continue a não sentir lá muito bem. E os tigres do Borges? Onde é que eles entram na minha história? Apareceram porquê? Eu não os chamei, pensou. Se calhar é melhor perguntar ao Cesariny esta cena dos tigres, ele é capaz de saber. O único problema é que eu não conheço o Cesariny, quanto mais fazer-lhe uma pergunta sobre os tigres do Borges. Isto complica-se e desvia-se do objectivo principal, que é descobrir a causa do efeito da acção que leva a que não me sinta lá muito bem, pensou no suspiro longo.
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Afastou o Borges e o Cesariny, personagens contraditórios entre si, e centrou a sua atenção no autor mais importante naquela altura, ela própria. Onde é que não me sinto lá muito bem? Quando é que não me sinto lá muito bem? Perguntas incómodas e cuja resposta ela já sabia, Em qualquer lugar, sempre. Reflectiu na conclusão e chegou a outra, conclusão. Se estou mal em qualquer lugar, sempre! Então é porque me falta algo para me sentir bem, sempre. Porra, já sabia que não resolvia isto à primeira, pensou para consigo. Agora falta-me qualquer coisa para aturar todo este circo que me rodeia. Estão todos passados da cabeça e eu é que me sinto mal. Se calhar é mesmo uma boa ideia falar ao Cesariny, pensou. Começo por lhe falar dos tigres do Borges e depois quando ele não estiver à espera, faço a pergunta chave. Ainda não sei qual é, mas logo se verá.
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O Cesariny quando a ouviu falar dos tigres do Borges, elevou um pouco a voz e respondeu, Já dei para esse peditório! E desligou. Pareceu-lhe ainda ouvir atrás do click um murmúrio a dizer, Que falta de pachorra. Ficou com o telefone na mão tempos sem fim antes de desligar. Tinha-se apercebido naquele momento da solução para o seu problema, da solução para o facto de não se sentir lá muito bem. Sabia que tinha perdido qualquer coisa. Tinha perdido alguma coisa que a fazia normalmente sentir bem. Soube naquele instante o que era. Soube naquele instante que tinha perdido a paciência.
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21.3.08

ONDAS DE PROBABILIDADE

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Custou-me a abrir os olhos e sair do sono profundo em que me encontrava. Como sempre, acordei sem saber quem era ou onde me encontrava. A minha consciência ainda dormia e o meu corpo amarrotado arrastava-se para o duche redentor. Abri a porta do roupeiro e embrenhei-me nos vestidos pendurados. Não era aquela porta, logo só podia ser a outra, a que estava na parede oposta. Não achei estranha a troca. Aliás, naquela altura bem me podia aparecer o Humpty Dumpty, que eu não estranharia.
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Estranhei foi a banheira de grés cinzento-escuro. Não me lembrava da banheira ser daquela cor. Banheira era branca, ponto final. Mas lá que aquela era cinzento-escuro, não o podia negar. E os azulejos também me fizeram franzir a testa. Azulejos de vidro vermelho? Decidi acordar no duche a tender para o frio. Não me serviu de muito. Bastou chegar ao quarto para ficar a pensar onde é que estaria? Aquele não era de certeza o meu quarto. Ou seria o meu quarto, e eu é que seria outra? Confesso que estremeci com o pensamento. Até porque não me apetecia ser outra.
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Não me apetecia, mas tive que ser, à força. A roupa que tinha no roupeiro, era composta por vestidos e tailleurs de marca, daqueles que nunca tive a coragem de comprar. No entanto, vesti um conjunto de saia casaco preto e blusa magenta, com uma naturalidade que me surpreendeu. Não há dúvida que nos habituamos logo ao que é bom, pensei cá para comigo. Mas o desconforto continuava, assim como não saber onde me encontrava. E o desconforto aumentou, quando desci as escadas e entrei na sala vazia. Olhei em pormenor, procurando algo revelador, uma pista, qualquer coisa. E numa das prateleiras da estante de livros, brilhava uma moldura. Quase a medo peguei nela e para meu espanto, lá estava eu, sorridente e abraçada a alguém não totalmente desconhecido. A dedicatória dizia apenas, Para o meu amor, e assinava Jaime. Jaime? Quem era o raio do Jaime, pensei cada vez mais baralhada. Tinha conhecido um Jaime quando andara nas Bela Artes em Pintura, mas ele tinha seguido para Arquitectura e nunca mais o vira. Olhei melhor para a foto, e não achei graça nenhuma ao pensamento de que aquele tipo até podia ser ele. E a estranheza total continuou, até conseguir sair de casa com o pequeno-almoço tomado.
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Na mesinha ao pé da porta, estava a minha mala e as chaves do carro. Escusado será dizer que não era a minha mala e não eram as chaves do meu carro. Mas naquela altura, já dava como dado adquirido que, de facto, aquela era a minha mala, e aquelas eram as minhas chaves do carro. E fiquei paralisada junto à porta. Para aonde é que eu ia? E onde estava o meu carro? Seria que o local onde trabalhava ainda estava lá? Na dúvida, passou-me uma ideia pela cabeça, e procurei febrilmente o telemóvel na mala. De certeza que tinha um telemóvel. E lá estava ele. Um Nokia vermelho e cinzento, como a casa de banho. Era uma mulher muito moderna sem dúvida. Liguei o telemóvel e procurei o nome de Jaime. Lá estava, mais o número e e-mail. Fiz a ligação e foi com o máximo das naturalidades que respondi ao, Olá meu Amor, estou à tua espera para a reunião de coordenação, com um, Desculpa lá, mas o meu carro não arranca. Não me podes vir buscar?
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Abriu-me a porta do carro com um sorriso e um beijo apaixonado. Estás com um olhar diferente, comentou enquanto arrancava. Eu bem te disse ontem que aquela erva era bem potente. Parece que ainda estás pedrada. Não respondi e encolhi-me no assento como se fosse um passarinho sem ninho. O beijo soube-me bem, mas não era o beijo que conhecia. Fiquei curiosa e perguntei-lhe, Lembras-te há quanto tempo é que estamos juntos? Olhou para mim surpreso e respondeu um pouco atabalhoadamente, Que raio de pergunta, lá estás tu com a mania das datas. Que eu me lembre, desde que acabámos o curso de Arquitectura. A ideia de formar o atelier foi tua. Portanto deve ser à volta duns dez ou onze anos. Acertei? perguntou no sorriso a pedir confirmação. Fiquei para morrer, mas lá consegui fazer um sorriso de aprovação para o sossegar. Dez anos? O que me estava a acontecer? Tinha um estúdio de pintura, onde dava aulas particulares, e um emprego numa agência de publicidade, como ilustradora. Vivia com um dos fotógrafos da agência há alguns anos e tinha uma filha dele. Mas onde estava tudo isso? Apetecia-me chorar.
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O resto da manhã no atelier, foi do mais surreal que poderia ter imaginado. Participei em três reuniões sobre obras em curso, onde me pediam opiniões sobre materiais a substituir, cores a alterar e soluções para erros na construção. Para meu espanto, como que entrei em piloto automático e solucionei tudo com uma certeza que não deixava dúvidas. O Jaime olhava para mim com um misto de espanto e aprovação, do tipo, vai-te a eles com força. Quando as reuniões acabaram e ficámos sós, abraçou-me com força, e sussurrou-me ao ouvido, Dá-me tesão quando os desancas assim, sem piedade. Senti-o a caminhar para o ponto sem retorno e deixei-me conduzir no prazer exausto. E uma ideia surgiu no limbo das emoções líquidas.
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Quando esperava pelo início da primeira reunião, tinha visto no jornal o anúncio de uma conferência do Professor Michio Kaku, sobre Mundos Paralelos, Mecânica Quântica e Teoria M. Na altura tinha feito apenas uma leitura bem superficial, mas o bastante para me ficar na memória. Se alguma coisa estranha se passava comigo, e eu maluca não estava, ele seria a pessoa indicada para me dar um palpite. A conferência, dizia o jornal, era da parte da tarde. Saí a correr, com uma desculpa esfarrapada ao Jaime, e apanhei um táxi para a Faculdade de Ciências. A cidade, tal como eu a conhecia, estava na mesma. Parecia que só eu é que estava diferente. Onde é que eu já tinha ouvido isto?
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No rescaldo da conferência, estávamos todos, e digo todos, num estado quase Zen de ausência de pensamento. As ideias expostas desafiavam de tal maneira o senso comum, que ficava uma espécie de êxtase, onde se compreendia tudo, mas depois não se conseguia explicar nada por palavras. Mesmo assim consegui chegar à fala com o Professor, e na breve troca de impressões, ficou-me na memória o postulado de Bohr e Heisenberg, que diz que “Para resolver a discrepância entre Ondas de Probabilidade e a nossa noção do senso comum de existência, depois de ser feita uma medição por um observador exterior, a função de onda “colapsa” magicamente e o electrão cai num estado definido.” Por outras palavras, explicou-me gentilmente o professor, Antes de se fazer uma observação, um objecto existe simultaneamente em todos os estados possíveis. Para determinar em que estado está o objecto, temos que fazer uma observação, o que faz “colapsar” a função de onda e o objecto transita para um estado definido. O acto de observação destrói a função de onda e o objecto assume agora uma realidade definida. Escusado será dizer que me sentia como se fosse o electrão a surfar nas ondas de probabilidade. Algo tinha acontecido, e eu existia num estado indefinido e precisava de alguém para me fixar num estado definido e estável. Saí dali e entrei no café em frente para beber um chá e pensar calmamente como iria pôr a minha ideia, a minha teoria, em prática.
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Enquanto o chá não vinha, procurei no telemóvel o nome do meu companheiro de sempre, como eu o lembrava. Não se chamava Jaime, mas sim Júlio. Não era arquitecto, mas sim fotógrafo. Como já esperava, não constava nenhum Júlio. Pedi a lista Telefónica e fiz uma busca pelas agências de publicidade e pelos estúdios de moda. Como sempre acontece, no último telefonema que fiz, pareceu-me reconhecer a voz dele, um pouco rouca e com uma ligeira gaguez lá atrás. Disse que era uma ilustradora que precisava de umas fotos de nus para servir de base para umas ilustrações, e gostava de marcar uma sessão. Como já calculava, disse que sim. Não conheço nenhum fotógrafo que diga que não a uma sessão de nu. Perguntou-me quando poderia ser. Respondi que tinha pressa, e se ainda podia ser naquela tarde. Quase que rezei para que ele dissesse que sim. A perspectiva de voltar para a casa desconhecida punha-me bastante angustiada. Ok, disse por fim, Apareça daqui por uma hora. Apontei a morada e chamei um táxi. Reparei na saída que o chá continuava por beber. Pensei, Este chá não pertence à minha realidade, e entrei para o táxi.
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Cheguei ao estúdio antes da hora marcada, e resolvi entrar no prédio e esperar no átrio de entrada. O estúdio era numa das lojas do rés-do-chão, e a entrada era pelo átrio. Um sofá vermelho, bem coçado, estava ao lado da porta. Reconheci o “nosso” sofá velhinho. Tantas vezes que o quis deitar fora, mas ele não deixou. Dizia que dava charme e estilo. Como é que teria ido ali parar? Sentei-me e esperei.
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Quando já começava a ler páginas de um livro imaginário, a porta abriu-se. Primeiro saíram duas raparigas magríssimas, modelos sem dúvida. Depois um caixote com rodas, cheio de roupa pendurada, empurrado pelo produtor. Olhei na direcção da porta e vi a tua cabeça assomar em câmara lenta. Olhaste para mim, piscaste os olhos, uma ou duas vezes como se quisesses certificar-te que eu estava mesmo ali, sorriste e disseste-me, O que é que estás ai a fazer? Vi-me aflito com a produção da colecção da Ana Abrunhosa. Bem me podias ter dado uma ajuda! Agora vais pagá-las, e com juros!
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Quando me beijaste, e senti o teu calor, a lembrança da outra realidade diluiu-se no espraiar da onda de probabilidade. Voltava a ser a tua mulher.
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-fotomontagem sobre desenho de Ana Abrunhosa
 
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