9.9.10

SAUDADE DE LAURA

Quando se arruma uma câmara escura, encontramos pedaços esquecidos de nós, quer sejam negativos perdidos, provas de contacto que resvalaram para trás das tinas de revelação, tiras de papel de provas fotográficas, fórmulas de reveladores envelhecidas e manchadas, cassetes de rolos, e papéis vários. Desta vez encontrei um que me chamou a atenção. Tratava-se de uma carta, e fiquei curiosa, até porque já não me lembro se chegou a ser enviada. Foi escrita pelo residente da câmara escura, enquanto eu preparava o texto conjunto que fiz com a Laura, "Por Volta Da Meia Noite". E de repente fiquei com uma saudade louca da Laura.
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a foto de cima é da autoria do B e a de baixo é da autoria da Laura
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Carta que encontrei, entalada na base do ampliador...

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Quando a nossa filha nasceu, estava eu a começar a estudar a Respiração Circular com base num livrinho do Trent P. Kynaston. Passava horas na casa de banho com a boca cheia de água a esguichar devagarinho, enquanto inspirava ao mesmo tempo pelo nariz. Abdominais, músculos da bochecha e concentração. No Sax estudava os High Tones (Eugene Rousseau) e as intermináveis escalas que o meu professor insistia em praticar. Tá claro que ele é que tinha razão, mas eu queria era tocar e improvisar com os temas que tocávamos em conjunto do Jazz FakeBook. Ele tocava clarinete e eu sax. Tocávamos standards, todos. Ou tentávamos...Ele como músico profissional, embora estivesse reformado, tocava-os na perfeição. Eu ia no banco de trás....Então quando íamos para o bop e para os temas do Bird, esquece! LáSibemoldó, Lásustenido, Dó,RéMiSolFá, MiSol, em si bemol...reconheces o começo de Quasímodo? E este até nem era dos piores...

Mas o mais giro era quando a pauta tinha um acorde ligeiramente diferente do que é comum tocar ou do que estás habituada a ouvir. Ele tocava certo pela pauta e eu tocava um pouco de ouvido pelo que conhecia de cor dos discos. Claro que dava fífia e tínhamos que voltar atrás...Eu argumentava que soava melhor como eu tocava, mas ele dizia que quando eu estivesse sozinho tocava como quisesse. Na altura até transformei uma das casas de banho do apartamento em que vivíamos num estúdio forrado a painéis acústicos, para poder tocar à noite sem me chatearem.

Das experiências mais potentes que tive a tocar, foi em solo absoluto, improvisando em meditações de grupo, acompanhando quem conduzia a meditação. Da primeira vez deu-me uma branca, depois...conto-te um dia destes!

Resumindo, a nossa filha foi crescendo, a vida mudando e deixei de tocar vai para dois ou três anos. Falta de tempo, outros interesses criativos a ocuparem o espaço junto com a fotografia, a pintura, a escrita, a navegação (sem ser da net...) e o dia só tem 24 horas! Mas o Jazz, ou melhor dizendo, a boa música anda sempre por aqui!

A minha menina começou a gostar de Jazz depois de ir comigo ao Concerto do Charles Lloyd na Aula Magna. Depois foi o Concerto duplo do Joshua Redman e do Ornette Coleman no Coliseu. Um pouco mais forte, mas a conquistar-lhe o ouvido. E depois os míticos Set’s no Seixal Jazz do Paulo Gil. Hoje diz que eu a ensinei a gostar de jazz. É bonito, não é?

Também foste tu que iniciaste o Rainbowman no Jazz ou ele já tinha a chama? Hello Rainbow! O mundo já foi nosso, agora é a vez delas! Talvez seja a maneira de o mundo ficar mais bonito e terno...

Desculpa lá a chamada de atenção, mas tenho bastante consideração por ele, mesmo sem o conhecer! Só pelos posts e pelos comentários que faz no Excitações. À parte o Paulo Coelho (também não gosto), cheira-me que temos bastante em comum... Uma delas é partilharmos a vida com uma mulher que nos preenche na totalidade! Eu não devia dizer isto, mas vocês merecem!

Agora podes começar a ter a tua baixa de tensão. No atelier ouvíamos bastante o álbum Kamakiriad e acho que ainda tenho no meu estúdio uma K7 com esse disco. Era a altura em que praticávamos bastante o Michael Franks a par da Carla Bley e do sempre inesperado Charlie Haden, que conheci em Lisboa, naqueles tempos idos em que o Carlos Paredes lhe ofereceu uma Guitarra Portuguesa, e onde se combinou o disco a duo. Tempos que já não me lembro muito bem, mas que foram tempos de jazz, jazz e jazz. Ou o 25 de Abril não fosse uma improvisação em si bemol...

Quanto ao Livro do Miles, o meu está um pouco melhor, mas com as páginas bastantes amareladas e a cheirar a ácaros por tudo o que é sítio. E o Bird Lives, já leste? E o Chasin’ the Trane? E o ... Deixa lá que eu também não os li todos! Estão aqui na estante esperando a vez para se cumprirem!

A Maria está em pulgas porque não a deixo mexer no teclado, por isso vou ficar por aqui. Mas aproveito só para completar a carta, que Woody Allen é aqui residente! Só não gosto muito da fase Berguiana. É interessante, mas prefiro o Everyone Says I Love You , com o avô nu na fila do pão, do que a mulher fútil que sossega o marido cientista em Interiors (se é que não estou a confundir o título).

Gostamos, gostamos, gostamos! E o Play It again Sam com a cena do perfume a mais, é demais! Aliás o Woody Allen, é demais, sempre! Como nos Vigaristas...Sabes que um amigo meu, esteve há uns anos em NY e jantou no restaurante em que ele estava a tocar? Diz que na vida real é igualzinho aos filmes! Casaco de bombazine, pullover e o ar meio paranóico do costume, para alem do clarinete...New Orleans...

Mas é bonito ir revelando a vossa amizade! É como se a vossa imagem se fosse formando no papel molhado, oscilando para a frente e para trás no fundo da tina de revelação... A luz por enquanto é encarnada e difusa. Qualquer dia acendemos a luz e fixamos a foto. É capaz de lá estarmos todos! A preto e branco, com música de jazz em fundo!

(Esta última frase é da Maria! Não resistiu e teclou!)

beijinhos para ti e para o Rainbow

B e Maria

(A foto do teu sex/sax está linda!)

 
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