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O Dolphin Dance inclinava-se na bolina elegante dos seus cinquenta pés. A costa escarpada da ilha de Bequia aproximava-se velozmente por entre a névoa formada pelas miríades de partículas de água que brincavam ao apanha na rebentação desordenada das ondas. Para trás tinham ficado os Tobago Cays e a Petite Saint Vincent. Para trás tinham ficado igualmente pedaços de todos nós, colados com mar e vento às areias das ilhas desertas, esperando os piratas charmosos da nossa imaginação.
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Atenção ao bordo, gritou o Louis LeClerc da roda de leme de estibordo. Podíamos ver o branco dos olhos das rochas quando avisou com voz decidida, Leme de Ló. As escotas dançaram umas com as outras, a genoa oscilou a princípio, como se ainda não tivesse decidido mudar de bordo, enquanto a vela grande, orgulhosa e vaidosa, com um sacão passou para a amura de bombordo. Com esta manobra, passamos a ver a entrada da baía de Port Elisabeth. Mais um bordo e estávamos de novo em Bequia, para nós a mais querida de todas as ilhas daquela zona das Caraíbas.
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A noite chegou enquanto preparávamos o jantar a bordo. Era noite de festa e nós estávamos lá para dançar até de madrugada. Era a nossa última noite antes de entregar o barco na baía de Blue Lagoon, em St. Vincent, nosso remoto local de partida, parecia que há muitos séculos atrás.
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Atracámos o dinghy na amarração do clube de mergulho, e fomos à procura do local da festa. Tinham-nos dito que vinha um músico fabuloso que dava pelo nome de Shadow. A coisa prometia, só faltava saber onde. O Jimmy, natural da ilha, sabia bastante bem onde era a celebração, como viríamos a constatar depois. Mas antes, a caminho do local do ritual dançante, fomos visitando todos os bares, como de fossem estações de uma peregrinação. Em vez da reza do costume, provávamos a Caribe local. E assim fomos subindo a encosta, seguindo o nosso guia casual, até chegarmos ao recinto de jogos de Criquete e Basquetebol. A multidão que ondulava junto ao portão, dizia-nos que era ali. Depois de me porem uma pulseira cheia de hologramas a brilhar, entrei para o recinto já quase cheio. Parecia que estava numa festa de liceu ao ar livre, com a diferença que os alunos eram todos de cor, e só nós e mais um casal de holandeses, a ver pelo escaldão que levavam, é que éramos a dar para o deslavado. Além disso, estavam todos a petiscar frango frito com arroz e feijão, em vez de gelados e pipocas. Onde é que se bebe?, perguntou o LeClerc ao Jimmy.
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Não servem bebidas alcoólicas aqui, só Cocacola, respondeu num sorriso branco pepsodente, para acrescentar, Mas o que o pessoal aqui faz, é ir lá fora comprar uma garrafa de Rum, daquelas de bolso, e depois baptiza a cocacola aqui dentro, discretamente, salientou com um arquear de sobrancelhas multirracial. Olhei para o LeClerc, mas já só lá estava a sombra quádrupla dos projectores.
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Não contive um sorriso quando o vi regressar como se nada fosse. Olhava distraidamente para os polícias que vigiavam o recinto. Do inchaço enorme no bolso dos calções, sobressaía o gargalo de uma garrafa. Comentou que, Já não havia das pequenas, então comprei a do costume, e puxou ligeiramente a garrafa onde se lia em letras douradas, Mount Gay Reserva. Sorriste também, como se fosse a coisa mais natural do mundo e disseste na ocasião, Então vamos lá beber umas cocacolas.
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Já a garrafa ia a meio, quando o Shadow entrou triunfante na sua barba grisalha a pontuar de branco a vestimenta negra. A banda acentuava os riffs de guitarra com a secção de metais, e toda aquela massa de corpos ondulantes vibrava em uníssono. Perdi-te de vista. Navegavas em rumos concêntricos, e ciclicamente vinhas ao meu porto, para te abasteceres de mim e também de Mount Gay.
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A celebração estava no auge, deixou de haver negros ou brancos no recinto. Havia apenas a música e o mar de corpos que a dançavam. De repente um vento fresco começou a soprar devagarinho, para de seguida se abater sobre nós uma chuvada torrencial, daquelas que encharcam até a alma mais empedernida. Que me lembre, ninguém arredou pé, nem parou de dançar.
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Shadow para finalizar, repetiu em versão extra longa o tema ícone daquela noite, para delírio de todos. A garrafa de Mount Gay foi deitada fora na vergonha de ter ficado vazia, e nós dirigimo-nos cambaleantes para a amarração, onde o dinghy nos esperava pacientemente, para nos levar a uma das estrelas da constelação de Mooring que brilhava por cima de Admiralty Bay. No caminho, descobriste no bolso da camisa ensopada de chuva e suor, o resto de um charro da erva mais mortífera que alguma vez fumáramos, e para acabar o ritual, acendeste-o. Fumaste-o com o LeClerc. Eu já tinha emoções que chegassem e bastava o cheiro para me pôr zonza, e o outro tripulante que nos acompanhava, já estava clinicamente ausente. Caminhava automaticamente, com a ajuda da descida da rampa que nos conduzia à praia, cantarolando baixinho o refrão da última música.
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LeClerc insistia em ser ele a levar o dinghy. Sou quem tem mais tempo de mar, por isso levo eu, dizia com o indicador levantado para acentuar. E eu sou o mais velho, dizias tu não muito convencido. Para piorar a situação apareceram dois tripulantes de um catamaran de charter a pedir-nos boleia para a embarcação. Comecei por dizer que talvez não fosse muito boa ideia, mas os braços abertos do LeClerc desfizeram qualquer dúvida. Ainda hoje penso que o sorriso dele brilhava no escuro. Com os tripulantes do Catamaran a indicar o rumo, foi fácil dar com a embarcação deles. Depois foi por puro acaso que encontrámos a nossa no meio da quantidade de barcos fundeados na baía. Fazias coro com o Louis, ao dizer que, Com um fuminho damos sempre com o barco. E riam-se até se engasgarem, como dois putos contentes e felizes.
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Acostámos na perfeição ao Dolphin Dance, aí o acaso já não teve nada a ver com isso, e acordámos os que tinham ficado a bordo, com as risadas alucinadas de quem não quer fazer barulho. Deu-nos a fome, porque seria?, e fomos comer os restos do jantar. Já não havia cerveja, e quando o drama profundo já se começava a desenhar, eis que surge LeClerc, triunfante com uma garrafa de Mount Gay na mão. Tinha-a guardado para uma emergência, disse no sorriso mais feliz que alguma vez vi.
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No dia seguinte, iniciámos os procedimentos para voltarmos a Portugal. No entanto, acho que ficámos todos em Bequia e continuamos a viver por lá. Regressaram as nossas sombras. Nós ficámos na Terra do Nunca....
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(João Pedro, será que respondi à tua pergunta?)