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Todas as manhãs a rotina era a primeira a levantar-se e a tomar o pequeno-almoço. Já confortada decidia-se a iniciar o dia. Às vezes ainda pensava iniciá-lo de maneira diferente, mas depois decidia proceder da maneira igual ao dia anterior, ou não fosse ela a rotina.
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Assim, começou por acordar a mãe bem cedo, ainda antes dos outros. Depois foi acordar o pai com o barulho da água a correr para o duche, e por fim lembrou a mãe de chamar o filho, primeiro suavemente, depois mais energicamente, e por último destapando-o com a lengalenga do costume, O teu pai já está vestido e se queres boleia para o liceu, levanta-te já. Enquanto a rotina tomava o segundo pequeno-almoço na companhia do pai, este preparava-se para sair, ao mesmo tempo que voltava a cabeça para o corredor e dizia em voz alta, Vou sair daqui a cinco minutos, se queres boleia, despacha-te.
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Tinha acabado de se vestir, quando ouviu a porta da entrada bater com força. Alguém tinha que arranjar aquela fechadura, pensou, enquanto ouvia o som familiar do motor da carrinha Opel, a começar a trabalhar. Ia a sair quando reparou que estava descalço. Voltou atrás, ao mesmo tempo que o som familiar da carrinha, se afastava em direcção à calçada. Resignado, deu um beijo à mãe, apanhou o velho bornal de lona da tropa com os livros e cadernos, juntamente com o chapéu de abas largas que tinha a mania de usar, e saiu a correr em direcção ao Largo da Boa – Hora para apanhar um eléctrico. A linha de eléctrico e o caminho para o liceu eram os mesmos, por isso não perdia tempo em ir por ali.
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Teve sorte e ainda foi a tempo de saltar para a traseira dum, agarrando-se à grade do lado exterior. O eléctrico ia cheio e assim era uma maneira de o apanhar. Os tempos de andar na pendura já lá iam, mas por vezes justificava-se, como naquele dia. Nem tinha que se esconder, o eléctrico ia tão cheio que o revisor nem se conseguia mexer lá dentro, quanto mais aproximar-se da porta. Olhou para o relógio e chegou à conclusão que talvez chegasse dentro da tolerância dos cinco minutos, senão estava feito, era mais uma falta a juntar a algumas que já tinha.
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Ia a chegar ao Largo do Rio Seco, quando viu de relance um carro com riscas azuis. A bófia, deixou escapar no sobressalto, enquanto saltava instintivamente do eléctrico em andamento. Não reparou no VW carocha, que entretanto decidira ultrapassar o eléctrico, e sem saber bem o que lhe estava a acontecer, começou por ouvir um som abafado mesmo por baixo dele, a janela do eléctrico passou-lhe de repente no canto da visão, enquanto o azul do céu tendia para a casa em ruínas que lhe estava à esquerda, e a sua própria sombra aproximava-se rapidamente de si. Caiu com a rapidez com que se levantou. Todos olhavam para ele, estáticos, como se estivessem congelados e ele fosse o único animado de vida. A bófia, lembrou-se, e desatou a correr em direcção ao túnel do Rio Seco, no instante em que o condutor do carocha saía do carro, ainda sem perceber bem o que se tinha passado.
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Saiu do túnel quando viu o carro com riscas azuis a subir a calçada, e sentiu uma dor alaranjada na anca esquerda. Doía-lhe o corpo mas não tinha nada partido, aparentemente. E agora?, o melhor é entrar no Liceu pela porta do lado sul, é mais longe mas evito ir pela calçada, pensou enquanto se punha a caminho, coxeando ligeiramente. Começou a conferir se não tinha perdido nada, mas estava lá tudo. Quando tinha ido pelo ar agarrou bem o bornal e o chapéu. Também não tinha mais nada para me agarrar, pensou a sorrir enquanto apertava o passo pela Travessa do Giestal acima.
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Entrou sozinho pelo portão Sul, um enorme portão de ferro, desproporcionado em relação à quantidade de pessoas que por ele entravam diariamente. Igualmente fora de escala, era a escadaria que dava directamente para a entrada nobre do liceu. Era como, se a mesma, tivesse sido projectada para acolher um visitante ilustre vindo do rio, Talvez o D. Sebastião, ironizou.
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Não entrou pela secretaria, já tinha passado o tempo dos cinco minutos de tolerância e não queria encontrar nenhum dos porteiros Pides que por ali já deviam andar. Contornou pela direita o edifício, e dirigiu-se ao recreio fechado. Lembrou-se de quando era um miúdo e lá tinha entrado pela primeira vez, naquela altura não tinha portas de madeira e vidro. Era um espaço aberto e frio, só confortável no verão. Já tinham passado alguns anos, suspirou na memória recente. Entrou e pareceu-lhe totalmente vazio. Passeou o olhar distraidamente, e reparou no halo de luz ténue que emanava do vulto sentado ao canto do pátio.
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Curioso, dirigiu-se para lá. Parou quando ela levantou a cabeça e olhou para ele com um sorriso, continuando de seguida a escrevinhar no caderno aberto na mesa enorme. Quando ela sorrira, a luz tinha aumentado. Piscou os olhos como se estivesse encandeado e quisesse ver melhor. Provavelmente uma nuvem que descobriu o sol, pensou. No entanto continuava parado no mesmo sítio, sentindo-se um pouco ridículo. Só lá estavam os dois, ela escrevia e ele fazia figura de parvo. A anca começou a doer-lhe de novo, era uma dor latejante, agora a tender para o roxo. O roxo lembrou-lhe o manto do Senhor dos Passos, uma das figuras que saíam para a rua nas procissões da Igreja. O tempo tinha-se fundido com o espaço, e tudo se passava a um ritmo bem lento. Ela continuava a escrever sem lhe dar muita atenção e ele já estava no ponto em que ouvia distintamente todos os ruídos que o envolviam. Antes de começar a ter pena de si próprio avançou em direcção àquela luz que o intrigava e ouviu-se a dizer, Olá, que estás a fazer? respondendo mentalmente para si próprio, A escrever que está um estúpido a perguntar-me o que estou a fazer.
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Ela voltou a sorrir e disse-lhe que, Estou a acabar um poema sobre o mar cheio de nuvens, queres ouvir? Quando acabou, e lhe perguntou se tinha gostado, ele demorou um pouco a responder que sim. Demorou o tempo necessário para descer das nuvens e mergulhar no mar da razão, para fazer sinal com a cabeça, e dizer uns sons meio desconexos. Reparou também que a dor na anca tinha desaparecido. Sentindo-se bastante confortável arriscou um, Sabes, eu às vezes também faço uns poemas, só que nunca os mostrei a ninguém. Nem aos teus amigos? perguntou-lhe ela no sorriso cada vez mais luminoso. Os meus amigos não gostam de poesia, acham que é uma coisa feminina. São uns toscos, desabafou. E tens aí alguma para se ver? Não tenho, mas posso trazer-te amanhã. Tá bem! Passamos a encontrarmo-nos aqui neste lugar e trocamos poemas. Que achas? Ficou com o sim entalado na garganta, enquanto ela se despedia com um até amanhã.
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Nem tinha reparado que já tinha tocado para a segunda aula da manhã. Subiu as escadas a correr, e ainda entrou a tempo da aula de Organização Política com o Jaiminho.
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. (para ti, meu querido B, uma estória do tempo da outra senhora.)
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