28.3.08

OS TIGRES DE BORGES

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Havia já alguns dias que não se sentia lá muito bem. Vistas bem as coisas, não eram dias, talvez semanas ou meses, ou mesmo anos, não sabia bem. Era uma daquelas coisas que vinha de mansinho, sem aviso nem reparo, e que aos poucos e poucos ia mudando o seu dia à dia, sem que disso se apercebesse. Mas que não se sentia lá muito bem era um facto! O porquê já era outra coisa, pensava, sem saber por onde começar.
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Estaria diferente? Com certeza que estava, mas isso não era motivo para se sentir mal, antes pelo contrário! Sempre se sentira bem com as mudanças, achava que elas traziam sempre uma lufada de ar fresco ao seu quotidiano. Sempre fora assim. Mesmo quando as mudanças eram radicais, ao fim de pouco tempo começava a ler a nova direcção da corrente do rio, deixava-se levar e começava a navegar nas novas águas com entusiasmo redobrado. Estava diferente, mas isso era um facto normal nela, sempre em mudança como as águas dum rio, gostava de pensar. Só que desta vez estava diferente, mas não se sentia lá muito bem. Desta vez o ditado Pós Moderno que gostava de citar assentava-lhe que nem uma luva, Jesus Cristo morreu, Karl Marx morreu, e eu própria não me sinto lá muito bem!
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Começou por fazer uma busca meticulosa por todos os aspectos da sua vida, numa tentativa de perceber o que é que estava a provocar aquele mal-estar generalizado. Tremeu um pouco ao pensar que estava a agir como se fosse um daqueles gurus new age que desprezava, a aplicar um chavão, um lugar comum, para resolver a náusea em que estava o seu caminhar desperto. Pensou também que não tinha alternativa, se não eram os gurus new age, eram os gurus old age, andavam todos aos papéis, a limpar a sala e a despejar os cinzeiros. Ás vezes acertavam, outras vezes não, e o mexilhão que se lixasse, relembrou no velho ditado que dizia, Quando a água bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão!
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Decidiu meter ombros à tarefa e descobrir o que a fazia sentir-se não lá muito bem no seu dia a dia, no seu semana a semana, ou até quem sabe, no seu ano a ano. Decidida estava, e decidida começou a vasculhar a espiral de acontecimentos que a envolvia numa teia quase infinita de causa acção efeito causa. Como seria óbvio, recusou qualquer abordagem esotérica, tipo karma, o príncipe da causa efeito. Se fosse por aí, tudo poderia fazer sentido, era só uma questão de querer para que sim! Qualquer argumento de filme faz sentido, basta nós o querermos, pensava. Por aí não iria, definitivamente. Alem disso, tinha vários amigos que tinham enlouquecido ao irem por aí. E ela não queria que lhe acontecesse o mesmo.
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Tu és a actriz principal do filme que é a tua vida, veio-lhe à memória. Mais um chavão era do aquário, mas que lhe fazia algum sentido. Pois é, der por onde der sou sempre eu a boa ou a má da fita, Tudo gira à minha volta porque a minha atenção está cá dentro. Eu sou? Bom, se penso que sou, serei qualquer coisa, pelo menos sou eu, embora me continue a não sentir lá muito bem. E os tigres do Borges? Onde é que eles entram na minha história? Apareceram porquê? Eu não os chamei, pensou. Se calhar é melhor perguntar ao Cesariny esta cena dos tigres, ele é capaz de saber. O único problema é que eu não conheço o Cesariny, quanto mais fazer-lhe uma pergunta sobre os tigres do Borges. Isto complica-se e desvia-se do objectivo principal, que é descobrir a causa do efeito da acção que leva a que não me sinta lá muito bem, pensou no suspiro longo.
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Afastou o Borges e o Cesariny, personagens contraditórios entre si, e centrou a sua atenção no autor mais importante naquela altura, ela própria. Onde é que não me sinto lá muito bem? Quando é que não me sinto lá muito bem? Perguntas incómodas e cuja resposta ela já sabia, Em qualquer lugar, sempre. Reflectiu na conclusão e chegou a outra, conclusão. Se estou mal em qualquer lugar, sempre! Então é porque me falta algo para me sentir bem, sempre. Porra, já sabia que não resolvia isto à primeira, pensou para consigo. Agora falta-me qualquer coisa para aturar todo este circo que me rodeia. Estão todos passados da cabeça e eu é que me sinto mal. Se calhar é mesmo uma boa ideia falar ao Cesariny, pensou. Começo por lhe falar dos tigres do Borges e depois quando ele não estiver à espera, faço a pergunta chave. Ainda não sei qual é, mas logo se verá.
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O Cesariny quando a ouviu falar dos tigres do Borges, elevou um pouco a voz e respondeu, Já dei para esse peditório! E desligou. Pareceu-lhe ainda ouvir atrás do click um murmúrio a dizer, Que falta de pachorra. Ficou com o telefone na mão tempos sem fim antes de desligar. Tinha-se apercebido naquele momento da solução para o seu problema, da solução para o facto de não se sentir lá muito bem. Sabia que tinha perdido qualquer coisa. Tinha perdido alguma coisa que a fazia normalmente sentir bem. Soube naquele instante o que era. Soube naquele instante que tinha perdido a paciência.
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21.3.08

ONDAS DE PROBABILIDADE

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Custou-me a abrir os olhos e sair do sono profundo em que me encontrava. Como sempre, acordei sem saber quem era ou onde me encontrava. A minha consciência ainda dormia e o meu corpo amarrotado arrastava-se para o duche redentor. Abri a porta do roupeiro e embrenhei-me nos vestidos pendurados. Não era aquela porta, logo só podia ser a outra, a que estava na parede oposta. Não achei estranha a troca. Aliás, naquela altura bem me podia aparecer o Humpty Dumpty, que eu não estranharia.
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Estranhei foi a banheira de grés cinzento-escuro. Não me lembrava da banheira ser daquela cor. Banheira era branca, ponto final. Mas lá que aquela era cinzento-escuro, não o podia negar. E os azulejos também me fizeram franzir a testa. Azulejos de vidro vermelho? Decidi acordar no duche a tender para o frio. Não me serviu de muito. Bastou chegar ao quarto para ficar a pensar onde é que estaria? Aquele não era de certeza o meu quarto. Ou seria o meu quarto, e eu é que seria outra? Confesso que estremeci com o pensamento. Até porque não me apetecia ser outra.
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Não me apetecia, mas tive que ser, à força. A roupa que tinha no roupeiro, era composta por vestidos e tailleurs de marca, daqueles que nunca tive a coragem de comprar. No entanto, vesti um conjunto de saia casaco preto e blusa magenta, com uma naturalidade que me surpreendeu. Não há dúvida que nos habituamos logo ao que é bom, pensei cá para comigo. Mas o desconforto continuava, assim como não saber onde me encontrava. E o desconforto aumentou, quando desci as escadas e entrei na sala vazia. Olhei em pormenor, procurando algo revelador, uma pista, qualquer coisa. E numa das prateleiras da estante de livros, brilhava uma moldura. Quase a medo peguei nela e para meu espanto, lá estava eu, sorridente e abraçada a alguém não totalmente desconhecido. A dedicatória dizia apenas, Para o meu amor, e assinava Jaime. Jaime? Quem era o raio do Jaime, pensei cada vez mais baralhada. Tinha conhecido um Jaime quando andara nas Bela Artes em Pintura, mas ele tinha seguido para Arquitectura e nunca mais o vira. Olhei melhor para a foto, e não achei graça nenhuma ao pensamento de que aquele tipo até podia ser ele. E a estranheza total continuou, até conseguir sair de casa com o pequeno-almoço tomado.
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Na mesinha ao pé da porta, estava a minha mala e as chaves do carro. Escusado será dizer que não era a minha mala e não eram as chaves do meu carro. Mas naquela altura, já dava como dado adquirido que, de facto, aquela era a minha mala, e aquelas eram as minhas chaves do carro. E fiquei paralisada junto à porta. Para aonde é que eu ia? E onde estava o meu carro? Seria que o local onde trabalhava ainda estava lá? Na dúvida, passou-me uma ideia pela cabeça, e procurei febrilmente o telemóvel na mala. De certeza que tinha um telemóvel. E lá estava ele. Um Nokia vermelho e cinzento, como a casa de banho. Era uma mulher muito moderna sem dúvida. Liguei o telemóvel e procurei o nome de Jaime. Lá estava, mais o número e e-mail. Fiz a ligação e foi com o máximo das naturalidades que respondi ao, Olá meu Amor, estou à tua espera para a reunião de coordenação, com um, Desculpa lá, mas o meu carro não arranca. Não me podes vir buscar?
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Abriu-me a porta do carro com um sorriso e um beijo apaixonado. Estás com um olhar diferente, comentou enquanto arrancava. Eu bem te disse ontem que aquela erva era bem potente. Parece que ainda estás pedrada. Não respondi e encolhi-me no assento como se fosse um passarinho sem ninho. O beijo soube-me bem, mas não era o beijo que conhecia. Fiquei curiosa e perguntei-lhe, Lembras-te há quanto tempo é que estamos juntos? Olhou para mim surpreso e respondeu um pouco atabalhoadamente, Que raio de pergunta, lá estás tu com a mania das datas. Que eu me lembre, desde que acabámos o curso de Arquitectura. A ideia de formar o atelier foi tua. Portanto deve ser à volta duns dez ou onze anos. Acertei? perguntou no sorriso a pedir confirmação. Fiquei para morrer, mas lá consegui fazer um sorriso de aprovação para o sossegar. Dez anos? O que me estava a acontecer? Tinha um estúdio de pintura, onde dava aulas particulares, e um emprego numa agência de publicidade, como ilustradora. Vivia com um dos fotógrafos da agência há alguns anos e tinha uma filha dele. Mas onde estava tudo isso? Apetecia-me chorar.
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O resto da manhã no atelier, foi do mais surreal que poderia ter imaginado. Participei em três reuniões sobre obras em curso, onde me pediam opiniões sobre materiais a substituir, cores a alterar e soluções para erros na construção. Para meu espanto, como que entrei em piloto automático e solucionei tudo com uma certeza que não deixava dúvidas. O Jaime olhava para mim com um misto de espanto e aprovação, do tipo, vai-te a eles com força. Quando as reuniões acabaram e ficámos sós, abraçou-me com força, e sussurrou-me ao ouvido, Dá-me tesão quando os desancas assim, sem piedade. Senti-o a caminhar para o ponto sem retorno e deixei-me conduzir no prazer exausto. E uma ideia surgiu no limbo das emoções líquidas.
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Quando esperava pelo início da primeira reunião, tinha visto no jornal o anúncio de uma conferência do Professor Michio Kaku, sobre Mundos Paralelos, Mecânica Quântica e Teoria M. Na altura tinha feito apenas uma leitura bem superficial, mas o bastante para me ficar na memória. Se alguma coisa estranha se passava comigo, e eu maluca não estava, ele seria a pessoa indicada para me dar um palpite. A conferência, dizia o jornal, era da parte da tarde. Saí a correr, com uma desculpa esfarrapada ao Jaime, e apanhei um táxi para a Faculdade de Ciências. A cidade, tal como eu a conhecia, estava na mesma. Parecia que só eu é que estava diferente. Onde é que eu já tinha ouvido isto?
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No rescaldo da conferência, estávamos todos, e digo todos, num estado quase Zen de ausência de pensamento. As ideias expostas desafiavam de tal maneira o senso comum, que ficava uma espécie de êxtase, onde se compreendia tudo, mas depois não se conseguia explicar nada por palavras. Mesmo assim consegui chegar à fala com o Professor, e na breve troca de impressões, ficou-me na memória o postulado de Bohr e Heisenberg, que diz que “Para resolver a discrepância entre Ondas de Probabilidade e a nossa noção do senso comum de existência, depois de ser feita uma medição por um observador exterior, a função de onda “colapsa” magicamente e o electrão cai num estado definido.” Por outras palavras, explicou-me gentilmente o professor, Antes de se fazer uma observação, um objecto existe simultaneamente em todos os estados possíveis. Para determinar em que estado está o objecto, temos que fazer uma observação, o que faz “colapsar” a função de onda e o objecto transita para um estado definido. O acto de observação destrói a função de onda e o objecto assume agora uma realidade definida. Escusado será dizer que me sentia como se fosse o electrão a surfar nas ondas de probabilidade. Algo tinha acontecido, e eu existia num estado indefinido e precisava de alguém para me fixar num estado definido e estável. Saí dali e entrei no café em frente para beber um chá e pensar calmamente como iria pôr a minha ideia, a minha teoria, em prática.
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Enquanto o chá não vinha, procurei no telemóvel o nome do meu companheiro de sempre, como eu o lembrava. Não se chamava Jaime, mas sim Júlio. Não era arquitecto, mas sim fotógrafo. Como já esperava, não constava nenhum Júlio. Pedi a lista Telefónica e fiz uma busca pelas agências de publicidade e pelos estúdios de moda. Como sempre acontece, no último telefonema que fiz, pareceu-me reconhecer a voz dele, um pouco rouca e com uma ligeira gaguez lá atrás. Disse que era uma ilustradora que precisava de umas fotos de nus para servir de base para umas ilustrações, e gostava de marcar uma sessão. Como já calculava, disse que sim. Não conheço nenhum fotógrafo que diga que não a uma sessão de nu. Perguntou-me quando poderia ser. Respondi que tinha pressa, e se ainda podia ser naquela tarde. Quase que rezei para que ele dissesse que sim. A perspectiva de voltar para a casa desconhecida punha-me bastante angustiada. Ok, disse por fim, Apareça daqui por uma hora. Apontei a morada e chamei um táxi. Reparei na saída que o chá continuava por beber. Pensei, Este chá não pertence à minha realidade, e entrei para o táxi.
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Cheguei ao estúdio antes da hora marcada, e resolvi entrar no prédio e esperar no átrio de entrada. O estúdio era numa das lojas do rés-do-chão, e a entrada era pelo átrio. Um sofá vermelho, bem coçado, estava ao lado da porta. Reconheci o “nosso” sofá velhinho. Tantas vezes que o quis deitar fora, mas ele não deixou. Dizia que dava charme e estilo. Como é que teria ido ali parar? Sentei-me e esperei.
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Quando já começava a ler páginas de um livro imaginário, a porta abriu-se. Primeiro saíram duas raparigas magríssimas, modelos sem dúvida. Depois um caixote com rodas, cheio de roupa pendurada, empurrado pelo produtor. Olhei na direcção da porta e vi a tua cabeça assomar em câmara lenta. Olhaste para mim, piscaste os olhos, uma ou duas vezes como se quisesses certificar-te que eu estava mesmo ali, sorriste e disseste-me, O que é que estás ai a fazer? Vi-me aflito com a produção da colecção da Ana Abrunhosa. Bem me podias ter dado uma ajuda! Agora vais pagá-las, e com juros!
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Quando me beijaste, e senti o teu calor, a lembrança da outra realidade diluiu-se no espraiar da onda de probabilidade. Voltava a ser a tua mulher.
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-fotomontagem sobre desenho de Ana Abrunhosa

13.3.08

VAZIO

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Sempre fora diferente dos colegas da faculdade. Enquanto eles se preocupavam com a forma e estilo dos edifícios a criar, ela preocupava-se em criar o vazio interior. Enquanto eles esboçavam o espaço construído, ela esboçava o vazio confinado pelos inúmeros planos que visualizava a pairar no espaço imaginado. Era uma abordagem espacial vista de dentro, orgânica, criando o espaço visível a partir do vazio inicial.
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Os professores olhavam-na como se fosse uma excentricidade do processo de criação artística aceite e venerado. Ela pouco se importava, e foi com um assistente curioso que teve o seu primeiro orgasmo pleno, daqueles que costumam dizer que tem fogo de artifício e multidões a agitar bandeirinhas às cores. No entanto ela não sentiu nada disso. Sentiu-se maravilhosamente suspensa num vazio intemporal, quase sem tempo.
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Acabado o curso, viajou na procura da transcendência escondida no vazio dos templos e acabou por ficar uns anos no Nepal. Tinha ficado muito pequenina no centro da cúpula do templo de Boudhanath Stupa, e resolveu ficar para perceber as linhas escondidas por detrás daquelas pedras aparentemente inertes. Acabou por praticar Yoga e embrenhar-se na meditação profunda e na prática de Pranayama. Aprendeu a ficar vazia de tudo, para que a criação acontecesse. Aprendeu a confiar na visualização da ideia criativa. Os seus cinco segundos de criatividade, como lhe costumava chamar, na brincadeira séria.
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Voltou com uma força quase destrutiva e acabou por chocar os colegas de profissão com as suas propostas. Enquanto eles alardeavam que estavam cheios de ideias para projectar, ela tinha que se sentir vazia de qualquer ideia perante o desafio do projecto. Sentia-se como se fosse a antimatéria. Não desistiu, mas cansou-se de lutar contra o starsystem. E na busca da tranquilidade e do vazio, mudou-se para Évora. Pelo menos lá o horizonte estava bem longe, limpo e vazio de casas. E tinha o Aeródromo, com os paraquedistas do Hangar número um.
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Naquele dia, tudo estava perfeito para o que queria. O tecto de nuvens estava relativamente baixo, aí pelos dez mil pés. A hora já tardia ajudava. O sol estava a caminhar para o ocaso e começava a projectar a luz poente polarizada. A grande sala vazia que era a zona de saltos, a drop zone como lhe chamava carinhosamente, estava iluminada para ela. Era o seu último salto do dia, o mais esperado. Apertou o arnês quase até doer, pediu a verificação do pára-quedas de reserva ao professor e amigo Amaral, e subiu para o Cessna que esperava por ela já com os motores a trabalhar.
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Quando chegou aos dez mil pés, mesmo a tocar o tecto de nuvens, abriu a porta do avião deixando entrar a turbulência e ruído do motor, e espreitou para baixo na vertical. O hangar era um rectângulo pequeno e longínquo, ligeiramente à sua esquerda. Fez sinal com o polegar ao piloto para corrigir a rota e ficou na borda a observar a sua posição em relação ao hangar. Quando achou que o desconto do vento estava bem, gritou um, Corta, para o piloto e saiu para a asa. Olhou-o na certeza, e assim que sentiu o leve pairar do avião saltou para o vazio.
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A sensação era quase a mesma que tivera no seu primeiro orgasmo pleno. Apenas o vento na cara a fazia estar desperta. Viu uma pequena nuvem mais baixa e mudou a posição do corpo de maneira a passar bem no meio. A mancha branca que era o hangar ia ficando ligeiramente maior, o único sinal que estava a cair e a aproximar-se dele. E foi nesse instante que algo lhe chamou a atenção no limiar da visão do lado direito.
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Percebeu o que parecia ser um disco branco a pairar um pouco mais abaixo. Esticou um pouco as pernas e rodou ligeiramente o tronco. O seu corpo acelerou na rotação e aproximou-se com velocidade da mancha branca. Não a evitou. E desapareceu num estalido de alguns milhões de electrões volt. No hangar ninguém ouviu nada. No rádio ouviram-se umas interferências. No campo, um cão ladrou. E o silêncio quase que voltou, não fosse o som do Cessna a aterrar na pista asfaltada.
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Procuraram-na a noite toda, com lanternas de mão, Jeeps com os faróis acesos nos máximos a percorrerem os terrenos envolventes ao hangar. Ao fim de uma semana desistiram. Tinham batido o terreno até Montemor e não encontraram nada. Ficou o carro, estacionado frente ao bar. Ainda lá está, à espera, e vazio.
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8.3.08

BOLINA

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O roupão branco tapa timidamente o meu corpo nu e morno. O portátil ilumina tenuemente o meu peito. Os mamilos erectos espreitam as palavras que se vão juntando na busca do texto coerente. Frases vão-se construindo nas linhas deixadas pelas ondas que rebentam na praia. As ondas são de pensamento. A praia, a folha de papel feita ecrã plano. A apetência da escrita é o desejo do meu sexo húmido no pensamento de ti. Resisto à carícia desejada e sinto a excitação alaranjada a aquecer-me as costas. Mil imagens atravessam o meu sonho lúcido do aqui e agora. Yo-Yo Ma toca a Suite número 1 para violoncelo de Bach e as borboletas adormecidas no meu ventre, acordam e espraiam-se pelo meu peito até saírem pelos mamilos curiosos. Parecem faróis a iluminar o mar com os seus fachos de luz branca intermitente. Os olhos do corpo escrito sonham-te a navegar na minha direcção. Caças as velas na bolina cerrada da Nortada que te separa de mim. Quase que sinto o teu frio. Imagino o Moitessier no calor da Longue Route e aqueço-te na lembrança da nossa paixão. Sabes que te espero, na baía abrigada do meu corpo morno.

2.3.08

CONVITE PARA JANTAR

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Saiu do banho, ainda a escorrer água e sabonete, e correu nua para a janela do quarto de vestir. Afastou levemente as cortinas, no preciso momento em que o descapotável saía da garagem fronteira. Ele olhou para cima, por detrás dos óculos escuros, e a cortina fechou-se rapidamente, meio envergonhada. Só meio envergonhada, a outra metade estava dominada pela excitação que a invadia sempre que pensava nele, o vizinho misterioso e lindo de morrer, como gostava de o adjectivar. Tá bem, É piroso, Eu sei, mas gosto de o dizer. E depois? O arroz doce com desenhos de canela, também é piroso, e no entanto o D. Carlos adorava. Não há dúvida que vocês pertencem mesmo à piolheira, desabafava com um ligeiro abanar de cabeça, e mudava de tema. Não obstante a sua atenção interior, continuar focalizada no vizinho misterioso e lindo de morrer.
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Um dia, enquanto conferia o correio, verificou com surpresa que uma das cartas estava ali por engano. Ao ler a morada e o nome, sentiu as pernas a tremer. Era uma carta endereçada ao vizinho. Leu devagar, a saborear a descoberta, Professor Alberto Ganit. A carta vinha endereçada do Massachusetts Institute of Technology , mais precisamente do Departamento de Matemática. Olhou triunfante para o subscrito e tentou vê-lo à transparência, como se tentasse ver o vizinho lá dentro. Sorriu maliciosamente, agora tinha uma desculpa para conhecer o senhor professor de matemática, menos misterioso mas cada vez mais lindo de morrer.
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Nesse dia à noite, assim que o ouviu chegar, ajeitou o vestido escolhido para a ocasião, elegante e casual como convinha, compôs o penteado e decidida, atravessou a rua e tocou à campainha. A porta abriu-se, e ela imaginou-o a percorrer os passos necessários até ao portão em que se encontrava, numa lentidão própria dos filmes românticos americanos, com o cabelo a ondular na brisa e um sorriso pepsodente, ao qual só faltava a estrelinha a brilhar ao canto dos lábios. Quando o encantamento passou, como que acordou do torpor em que se encontrava, insultando-se mentalmente no microssegundo antes de lhe estender a carta, muda e esquecida de tudo o que tinha ensaiado durante a tarde. Ele, pegou no envelope com ar curioso e depois de ler o remetente, disse-lhe numa voz igualmente linda de morrer, É da minha Universidade, Ainda bem que a encontrou, Já estava a ficar preocupado! Ela sorriu, e já normal explicou-lhe que sim, do engano costumeiro do carteiro, que podia confiar nela para este tipo de coisas e que tinha gostado muito de o conhecer. Ele agradeceu, sorriu e beijou-lhe a mão na distinção elegante. Ela corou.
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No dia seguinte, já tinha saído do banho, quando ouviu o ralenti do carro dele prestes a sair da garagem. Espreitou pela cortina da janela, como de costume, e para espanto dela, viu-o a introduzir qualquer coisa na sua caixa de correio. Voltou para o carro e saiu para a rua, olhando como de costume para cima, para a sua janela. Desta vez ela não fechou envergonhada a cortina, e deixou ver por breves momentos a sua nudez na transparência do vidro. Vestiu-se a correr, desceu as escadas a dois e três, e abriu a caixa do correio no gesto sôfrego. Tinha um cartão timbrado do MIT, com umas linhas escritas à mão, diziam apenas, Convido-a para jantar, ligue-me para TT 015131.
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A cafeteira do café deu sinal de si por um bom meio minuto. Por fim, ela saiu do torpor em que se encontrava e apagou o lume do fogão. Enquanto se servia generosamente de café, bem precisava, continuou nas cogitações à volta do convite enigmático que recebera. Estava claro que era uma charada tipo Código da Vinci ou Código da Vintes mas a sério. Não imaginava o senhor professor de matemática, ainda por cima do émaiti, a alinhar em tretas dessas. Por isso só podia ser uma charada científica. Mas porquê? Pensou. Porque é que não lhe tinha dado simplesmente o número de telefone? Seria para a pôr à prova? Com certeza que sim, queria sair com ela, mas tinha colocado uma fasquia. Por isso não devia ser muito difícil, concluiu.
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Começou por escrever o valor de Pi, três vírgula catorze, e juntou-lhe o resto dos números. Obteve um número com nove algarismos, 314015131. Os números de telefone tinham nove números, mas a começar por 31 duvidava que existisse algum. Pegou no telemóvel e ligou o número, para de seguida ouvir a voz mecânica, no timbre conhecido, a dizer-lhe que o número marcado não estava atribuído. Olhou de novo para o convite e suspirou desanimada. Considerou a hipótese de mandar às urtigas o convite, mas o desafio era aliciante, já para não falar do seu amor-próprio a querer sair triunfante.
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Tentou lembrar-se de alguém conhecido que estivesse ligado às matemáticas, mas não vislumbrou ninguém. Nesse preciso momento veio-lhe à ideia o termo Quadratura do Círculo e por associação de ideias lembrou-se da sua amiga arquitecta. Lembrava-se que a amiga fizera em tempos uma casa para um cientista ligado à física das partículas. Tinha sido um projecto algo suigeneris, desenhado à mão e não em computador. Ficou suspensa na palavra computador e deu uma palmada na testa, uma daquelas palmadas que querem dizer o mesmo do que, porque é que não me lembrei disto mais cedo. E foi buscar o portátil.
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Introduziu no motor de busca o número 015131 e ficou a saber o código do papel de parede Marguaritaville. Não custa nada tentar, pensou com um sorriso, e continuou a introduzir outros factores de busca, sem sucesso algum. Já com a cabeça em água e o portátil a precisar de recarga, decidiu ir almoçar. Precisava de sair de casa, arejar a cabeça e desligar daquela paranóia dos números. Que se lixe o jantar, que se lixe o professor, por acaso lindo de morrer, pensou ainda com um sorriso assim assim.
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Quando voltava para casa, comprou um gelado de coco e natas, e como era seu hábito foi saboreá-lo, enquanto via os livros em segunda mão nas bancadas do lado de fora da livraria. Já estava a mordiscar o cone de bolacha húmida, quando o olhar foi atraído para uma capa preta. Era o romance de Carl Sagan, Contacto. Enquanto acabava o gelado e lambia os dedos pegajosos, tentou lembrar-se de uma coisa importante que tinha lido naquele mesmo livro. Era uma daquelas lembranças prestes a emergir, sentia-a a querer sair do esquecimento. Voltou atrás e foi comprar outro gelado, desta vez laranja com limão. Quando, com prazer, lambeu a bola de gelado alaranjada, lembrou-se.
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Lembrou-se da passagem em que um cientista fizera correr um programa para verificar se na sequência infinita de dígitos do número Pi, surgia algum padrão numérico repetitivo, ou alguma sequência de números primos, que pudesse ser enviada ou recebida, como uma mensagem de uma civilização extraterrestre. Soube naquele instante que a resolução estava no próprio número, algures lá dentro. Lembrou-se dos puzzles tipo Sopa de Letras que fazia em pequena. Nunca um gelado de laranja e limão lhe soube tão bem como aquele. Quando o terminou, correu para casa, abriu de novo o portátil e introduziu apenas duas letras, P e I.
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Sabia agora que o número 015131 era apenas um referencial, o local onde estava escondido o número que queria. Procurou as sequências e descobriu a Série de Beckman, com cem mil dígitos para lá da virgula. Levou o cursor até à linha dos dígitos 015101 a 015200 e foi contando os números até chegar aos 015130. A seguir lá estava o número que queria, 967504....
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Triunfante, pegou no telemóvel e ligou o número na expectativa. Uma voz linda de morrer, respondeu-lhe.
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