21.2.11

O SENHOR ANÓNIMUS SÁIDE

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Levantou-se da cadeira e foi com um certo ar de enfado que abriu a porta ao rapaz da Pizza Na Hora. Nem o sorriso meio comercial com que foi presenteado enquanto recebia a enorme caixa tamanho XL o afectou. E foi com agrado que fechou a porta e se dirigiu para o escritório, bastante desarrumado até para o seu gosto. Nos últimos tempos já não saía muito de casa e o escritório era o local onde passava a maior parte do tempo.

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Partiu a Pizza em fatias estreitas e pequenas, empilhou-as numa travessa e dirigiu-se para a mesa do computador. Era uma mesa espartana que contrastava com o resto do espaço. No centro, apenas pontuava um computador portátil e respectivo rato. Na ponta, um candeeiro de halogéneo iluminava o resto da mesa com uma luz branca que se misturava com a luz ténue do ecrã aceso.

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Matraqueou o teclado na certeza de um qualquer endereço electrónico e recostou-se saboreando uma fatia de pizza enquanto a página se resolvia na janela do portátil. Era um blog que não conhecia, virgem de si e dos seus comentários. Sorriu na antecipação do prazer e comeu outra fatia, retardando o momento sempre fascinante em que começava a percorrer os postes até encontrar um que lhe merecesse um comentário. Quando isso aconteceu, fechou os olhos como que a permitir que a inspiração o iluminasse e de seguida começou a escrever febrilmente.

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Quando carregou na tecla Enter foi o momento para comer mais uma fatia e observar o texto que tinha escrito. Começava sempre por, Anónimus Sáide, e depois vinha a prosa, venenosa e irritante, como era a sua imagem de marca. Não havia contemplações nem palavras gentis. Desde que tinha descoberto o anonimato, a sua verdadeira pessoa, o seu interior sempre amordaçado, tinha finalmente começado a falar sem ter que dar a cara ou enfrentar opiniões contrárias às suas. Era uma espécie de voyeurismo activo que lhe dava imenso prazer.

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Na travessa, jazia uma fatia fria e descolorida, quando fechou a tampa do portátil e se espreguiçou. O sol teimava em entrar por uma fresta da janela quase fechada. Já é manhã, pensou, Estou capaz de ir tomar um bom pequeno-almoço. A noite tinha sido gloriosa em comentários e tinha a certeza que o veneno que deixara iria fazer estragos.

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Estranhou quando entrou no café e as pessoas se afastaram à sua passagem, enquanto se dirigia para o balcão. Sente-se bem?, perguntou-lhe o empregado, afastando-se dele com um certo ar de repulsa. Quis esboçar um sorriso amigável e não conseguiu. A face não reagiu. Ouviu o empregado dizer-lhe ainda que, O melhor é sair para não assustar as pessoas. Quis dizer qualquer coisa, mas a voz não lhe saiu. Confuso, dirigiu-se para a saída através do corredor aberto pelas pessoas que se afastavam à sua passagem.

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Na rua, quando o polícia o interpelou, ainda teve o discernimento de tirar o bilhete de identidade da carteira para mostrar quem era. Com efeito, já não se lembrava quem era ou como se chamava, e não foi com espanto que leu no bilhete de identidade o nome de Sr. Anónimus Sáide. Espanto teve, quando voltou o bilhete de identidade para ver a fotografia da sua face, como era na realidade, e viu que já não tinha face. Tinha-a perdido na febre do comentário anónimo.

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(pintura de René Magrite)

 
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