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Normalmente não sonhava, embora soubesse que todas as pessoas sonhavam, e por acréscimo, ela também. No entanto, era como se não sonhasse nunca ou quase nunca.
Adormecia e era como se desligasse o interruptor da luz. Acordava no momento suspenso no instante de acordar.
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O sonho não fazia parte do seu universo consciente. O que existia nesse mundo fascinante era algo que raramente experimentava, e quando tal acontecia, quer fosse um bom sonho ou um mau sonho, ficava extasiada com a vivência naquele mundo e lembrar-se-ia para sempre do sonho que tivera.
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Ouvia fascinada as histórias das amigas, contando os sonhos diários que tinham, as experiências loucas e sem sentido que experimentavam, os medos e os êxtases que sentiam, os pesadelos que viviam durante a noite. Quem me dera ter um pesadelo, e lembrar-me dele. Quem me dera ter um sonho e ter consciência de estar a sonhar, costumava pensar.
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Começou por tentar estar consciente o mais possível antes de adormecer, a retardar ao máximo o momento de passagem para a outra realidade ou consciência. Invariavelmente perdia-se no vazio, agarrada a um qualquer pensamento que se repetia sem parar, até que deixava de ter consciência do mesmo no preciso momento em que adormecia profundamente.
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Uma noite, enquanto tentava estar alerta para o momento da passagem impossível, viu-o, ou melhor, teve a percepção que alguma coisa ou alguém estava a tomar forma no vácuo que ocupava toda a consciência que ainda tinha de si. Teve a percepção no instante antes de adormecer, e foi de tal maneira forte que no outro dia, ao acordar abruptamente do sono pesado que normalmente tinha, ainda se lembrava que alguma coisa se tinha passado no momento de adormecer. Passou o dia todo obcecada com tal facto e não fosse o trabalho que tinha para fazer, teria tentado adormecer antes da hora normal e rotineira.
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Nesse dia foi para a cama mais cedo e repetiu o procedimento da noite anterior. No preciso momento em que ia adormecer, ainda teve tempo para numa fracção de segundo vislumbrar duas portas suspensas no vazio.
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O dia seguinte, as semanas e os meses que se lhes seguiram, foram iguais ao que sempre tinha experimentado. Nada de sonhos, nada. Tinha a recordação das duas portas, e essa recordação pertencia-lhe, não tinha contado a ninguém a visão das duas portas a flutuar no vazio da existência, da sua existência.
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E como sempre acontece, quando já tinha desistido de ter qualquer percepção, por ínfima que fosse, do mundo dos sonhos, aconteceu. Viu as duas portas, e viu uma luz dourada na fresta da ombreira da porta do lado esquerdo. Pensou que isso queria dizer algo, poderia ser um sinal, e resolveu entrar. Estendeu o braço em direcção à porta e viu a sua mão agarrar e rodar o puxador. A minha mão, pensou maravilhada, consigo ver a mão do meu corpo no sonho. Decidida, empurrou a porta e ficou momentaneamente cega com a luz dourada e quente que a envolveu.
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Estava tão maravilhada com a torrente de luz que a envolvia e aquecia que nem reparou na voz por trás dos vultos difusos que a rodeavam. A voz, numa vibração grave e de cor laranja dizia, Finalmente meu amor, finalmente!
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Sentiu uma pressão no abdómen, mas não entendeu o que era. Olhou com mais atenção para os vultos difusos e pareceram-lhe familiares. Eram impressões vagas de pessoas que conhecia. Uma ideia tomou forma no seu lado direito e começou a aquecer-lhe o braço. Quando focou a atenção naquela massa viscosa e quente, percebeu que os vultos eram as recordações das pessoas que tinha encontrado ao longo do dia. De todas? Interrogou-se, enquanto olhava mais atentamente para aquelas formas indistintas e leitosas. Na primeira fila julgou perceber caras conhecidas, na segunda ainda achou mais algumas, mas à medida que alongava o olhar a estranheza era total.
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Percebeu finalmente um brilho alaranjado ao longe e tentou decifrar a vibração que emanava dele, mas o sussurro cada vez mais forte de todos aqueles vultos não a deixava ouvir. Sentiu um arrepio a percorrer-lhe o corpo e começou a dirigir-se para a vibração laranja que pulsava cada vez com mais intensidade. À medida que se deslocava, os vultos afastavam-se como peixes num cardume. A sua atenção estava focada na vibração laranja, sabia que ali estava algo de importante, e uma ideia começou a formar-se junto ao seu lado direito e envolveu-lhe o braço numa luz esverdeada e sensual que lhe dizia, Finalmente meu amor, finalmente.
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Quando integrou a luz, todo o seu ser estremeceu de prazer e numa fracção de tempo, os vultos das recordações do dia desapareceram e viu-se frente a frente com a vibração laranja que pulsava cada vez mais depressa. O pulsar rapidamente transformou-se num vórtice e julgou vislumbrar uma forma no seu interior, como se fosse uma crisálida.
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O vórtice parou por fim e revelou um corpo nu enrolado sobre si próprio numa posição fetal. Estendeu o braço para tocar aquele corpo e no mesmo instante sentiu-se envolvida por um abraço forte e macio ao mesmo tempo. O seu corpo vibrou de novo com um espasmo de prazer e o seu peito brilhou em uníssono numa luz verde levemente esbranquiçada. Sentiu um afago nos cabelos e retribuiu o gesto deixando a mão deslizar até ao pescoço. Sentiu a respiração quente azulada no seu pescoço e uma voz rouca que lhe sussurrava ao ouvido, Finalmente meu amor, finalmente conseguiste chegar até mim.
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Os joelhos tremeram-lhe, um arrepio subiu até aos ombros e diluiu-se na luz azulada que emanava dum ponto no centro da sua garganta. Sentiu o calor do corpo nu que a abraçava, sentiu o calor do seu próprio corpo, também nu, constatou com surpresa. Procurou instintivamente o beijo e sentiu os lábios a queimar na paixão desconhecida e no entanto já desesperadamente querida. O beijo entrou bem no centro das costas, perto das omoplatas, e subiu até explodir entre os olhos numa torrente de luz púrpura que a envolveu e elevou no espaço virtual que ainda percepcionava.
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Vem, sente-me e ama-me, Quis dizer no momento em que todo o seu ser começou a vibrar em uníssono, no momento em que soube que o tempo se anulava e o amor primeiro cumpria a promessa de ser. Ainda visualizou as vozes, Meu amor, a mesclarem-se juntamente com as partículas que se uniam e entrelaçavam até formarem um novo ser, uno e indivisível, finalmente.
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Um novo ser de luz que ficou a pairar no vazio infinito que se estendia em todas as direcções. Além dele apenas existia uma porta. A outra tinha deixado de existir no preciso momento em que se unira com a promessa do amor primeiro. A porta que ainda existia tinha uma particularidade, não tinha puxador, só podia ser aberta do lado de fora.
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Muitos anos passaram até ao dia em que, o marido e os filhos, deram ordem para desligarem a máquina que a mantinha em animação suspensa, prolongando-lhe o coma em que se encontrava, desde aquele dia em que adormecera bem cedo e não voltara a acordar.
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Tinham-na mantido assim, na esperança de virem a descobrir a razão do sorriso, que mantinha desde esse dia. Quando se cansaram, desligaram a máquina. Finalmente.
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