3.1.08

O SOFÁ VERMELHO

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231 East 47th Street, soletrei num inglês nada americano. O motorista do táxi amarelo com faixa preta de xadrez, também nada americano, respondeu-me com um lacónico, Going to The Factory? Respondi afirmativamente ao turbante que tinha à minha frente, e recostei-me no assento coçado, saboreando a alternância da luz e sombra dos quarteirões da baixa de Manathan ao pôr-do-sol.
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Quando por fim entrámos na Park Avenue, já a noite pintara os passeios largos de sombras alongadas e manchas de luzes coloridas das montras. Ainda era cedo, pensei. Falei novamente para o turbante cor de laranja e perguntei se conhecia o restaurante Serendipity. Respondeu-me que ficava em caminho, por isso podia deixar-me lá de seguida. Quase que nem o ouvi, a minha cabeça já pensava no enorme Frozen Hot Chocolat com que me ia deliciar.
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Deixou-me mesmo em frente ao restaurante, e como era cedo, ainda não estava cheio. Lá consegui arranjar uma mesa e pedi triunfante o dessert tão cobiçado. Olhei à volta, e fiquei bastante surpresa. Ou já estavam todos na sobremesa, ou então tinham pedido o mesmo que eu. Era o começo da lenda, não o sabia ainda, mas tal não evitou um sorriso de cumplicidade, partilhado com o homem da mesa do lado. Já tinha saboreado o seu Frozen e acendia agora um cigarro de mentol. Tinha um ar muito Kool, observei no trocadilho. Ele sorriu-me como se tivesse percebido o meu pensamento, e eu retribuí o sorriso meio envergonhada, sendo salva do embaraço pela empregada que me trazia o fruto proibido.
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Pequei descaradamente, lambuzei-me também, mas evitei qualquer pingo no vestido encarnado às bolinhas, muito sevilhano por sinal. O convite chegara no fim da sessão de fotografias de moda, e para apanhar o avião a tempo, saíra tal como estava. O casacão de pele destoava perfeitamente, mas até me dava um certo ar de chic proto-glam, embora na altura não soubesse o que isso era. Era mais uma sensação, quase que premonição. No fundo sentia-me quase como se fosse uma personagem de um conto.
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Desta vez, olhei descaradamente para o homem Kool, e pedi-lhe um cigarro. Era o ponto de equilíbrio que faltava naquele momento. Sorriu-me mais uma vez, e estendeu-me o maço branco com letras igualmente brancas em fundo verde. Tirei um cigarro e já a chama do isqueiro me convidava a acendê-lo. Thanks, disse no meu sotaque português, acentuando o a. De nada, respondeu-me com um sorriso bem trocista. Abri a boca no espanto. Fechou-ma gentilmente com um beijo na ponta do dedo. Será que sorri? Confesso que já não me lembro.
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Através do fumo branco, vislumbrei um homem muito bonito, o cabelo ruivo penteado para trás, contrastava com o fato cinzento assertoado. A gravata azul escuro com riscas cinzentas, combinava com a faixa azul escuro do chapéu de feltro cinza claro. Tudo muito old fashion, tudo muito MOB. Um ligeiro calafrio subiu alegremente pelo peito até sair pelos mamilos, tornando-os mais visíveis, para deleite do homem cada vez menos Kool.
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Como que adivinhando os meus pensamentos sossegou-me, esclarecendo que ia fazer um pequeno papel num home movie na Factory. Ia fazer o papel dum travesti que casa com uma transsexual. E agora? Dizia-lhe que também tinha sido convidada para figurante do filme? No fundo, não havia nada a esconder, iríamos contracenar na Factory. Sorri e expliquei que também ia para lá, que era modelo e que estava ansiosa por participar nas superstars. Pedi mais um cigarro, afinal estava em casa.
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Embora o Serendipity III estivesse relativamente perto de Central Park e da East 47th, resolvemos apanhar um táxi, que nos deixou em frente à fachada de vidro, entalada entre dois imensos edifícios forrados a pedra. Na porta negra de metal, enquadrada pelo pórtico neoclássico, podia ler-se o pequeno aviso a branco. Dizia simplesmente, Factory 5th floor.
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Entrámos no elevador todo forrado a folha de prata e saímos directamente no Hall envidraçado do quinto piso. À nossa espera estava o já underground famoso Joe Dalessandro, Little Joe para os amigos. Estava acompanhado de uma mulher líndissima. Foi-nos apresentada como Candy Darling, a estrela da noite. O meu companheiro deu-me a mão e conduziu-me para o interior do imenso estúdio. No tecto flutuavam balões prateados que se confundiam com a estrutura metálica também prateada. Tudo estava pintado nesta cor, as paredes e o tecto, até um telefone solitário junto às enormes janelas. Telas amontoadas junto às paredes davam a nota de cor necessária para que tudo aquilo parecesse real. As pessoas, uma multidão à primeira vista, não faziam os grupos do costume e misturavam-se como moléculas de água a ferver.
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Como é que te chamas? Perguntei ao meu companheiro. Como já vinha sendo hábito nele, sorriu-me um Luciano, e acrescentou um, Vamos beber qualquer coisa e conhecer mais qualquer coisa. Levou-me até um Lou Reed, com olheiras bem pretas, às voltas com provas litográficas de bananas amarelas. Beijaram-se, para meu espanto. Beijei-o para espanto meu, e ofereceu-me umas anfetaminas para escolher. Tirei a mais pequenina que lá havia e entrei naquela noite, vendo a minha imagem num dos muitos espelhos fracturados a fundir-se com a imagem de Luciano que me abraçava.
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Vou vestir-me para o filme, susurrou-me ao ouvido, desaparecendo por entre toda aquela gente. Tentei segui-lo, mas a minha atenção, já fragmentada, foi atraída por um Cecil Beaton que fotografava num canto o anfitrião Andy Wharol, de joelhos com um vibrador nas mãos e uma loura seminua por trás agarrando os peitos. Vim a saber depois que era a Brigid Polk, famosa entre outras coisas pelas infames Tit Paintings. Saí do transe quando ele me perguntou se podia fotografar-me. Nua?, perguntei. Como quiser, respondeu. Devia ser o efeito do vestido às bolinhas, muito sevilhano por sinal. Quando centrou as objectivas da sua Rolleiflex para mim, num impulso, levantei parte da saia e mostrei o sexo a ficar cada vez mais com vontade própria. Agradeceu-me com um sorriso e um aceno do seu inseparável chapéu de abas pretas. Um senhor, no meio de já não sabia bem o quê.
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Pareceu-me ver o Fernando Arrabal na conversa com o Truman Capote. Achei curioso o que é que o autor do El Entierro de La Sardiña tinha para falar com o autor de In Cold Blood. O que é que a poesia em movimento, ou o teatro Panique, tinha que ver com o romance de não-ficção. Se calhar tinham em comum as anfetaminas. Aproximei-me deles, mas fui interceptado por uma mulher ruiva que me abraçou e levou pela mão até um canto do estúdio. E vi, no meio dos quadros de silkscreen, o sofá encarnado. Brilhava na luz da minha segunda anfetamina e parecia que emanava nuvens de pontinhos brancos que ficavam a flutuar. Deixámo-nos cair no sofá e nova nuvem de poeira branca a envolver-nos. É cocaína, disse a minha companheira, basta cheirá-la. Olhei sem muita certeza para ela, e vi-o por trás da maquilhagem, era Luciano.
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Num impulso mais que desejado, beijei-o com sofreguidão. Senti-lhe os mamilos erectos no peito suave e gostei. Acariciei-os na luxúria de Lesbos transvertida. Tinha posto um daqueles vestidos de lantejoulas preto brilhante, muito curtos, e umas meias prateadas lindíssimas com uns sapatos de verniz encarnado vivo. No mínimo, bastante pop. Senti a sua mão a subir pelas minhas pernas e abandonei-me às suas carícias. Ninguém reparava em nós, e mesmo que reparassem, na altura estava-me nas tintas de dentro da minha bolha encarnada de desejo. Beijei-o uma vez mais e quase no orgasmo, as minhas mãos deslizaram nas meias brilhantes até chegarem à carne quente e nua das coxas. O prazer que tive foi tanto que tudo se começou a fragmentar, como os espelhos que nos rodeavam. Ainda senti o calor abrasador e húmido do seu sexo, feminino.
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Abri os olhos a custo, com o foco dos projectores mesmo apontados para o sofá vermelho onde nos encontrávamos. O filme do casamento ia ter o sofá por fundo. Luciano ajudou-me a levantar e meio zonza procurei a obscuridade. Quando ele me abraçou sorridente, não o repeli, mas perguntei-lhe, Afinal quem és tu, Luciano? Eu, começou por responder, Sou uma actriz cubana, que por vezes se veste de Luciano, para depois fazer papéis de travesti. Apenas isso. E como te chamas? Não tem importância, mas pode ser Clarisse Lay.
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E Candy Darling fez o seu último filme de casamento entre transsexuais e dragqueens, enquanto Lou Reed conservado em heroína e Speedballs iniciava com os Velvet Underground um passeio pelo lado mais selvagem da vida. Os outros, desde Andy Wharol a Jean Michel Basquiat ficaram pela excessiva nas nossas memórias, mesmo que imaginadas, e revivem sempre que alguém toca o Just Take a Walk on The Wild Side.
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31 comentários:

Jo disse...

Fantástico relato: de sorver até ao fim, à última anfetamina ;)
beijo*

D. Sebastião disse...

Que viagem... Já tinha saudades disto tuas.

beijo

Jaime disse...

Está muito bom. Umas reviravoltas engraçadas, achei piada ao name dropping nada despropositado, e também aos pormenores que descreves com uma pincelada. Entre outras coisas, tens um peculiar sentido de humor!

venus disse...

sabes que no entiendo mucho el lenguaje.. sin embargo la imagen ufffffff......
espectaclar.. incitante...

besos

Helena disse...

Que trip fantástica, bela Mercedes!
O Kool, o Luciano, a Clarisse...aiiii...
LSD, arte, alienação e uma das minhas palavras favoritas "Serendipity".
Bravo!
Beijos numa nuvem de cocaína

Anonimo do Algarve disse...

Isso é foi uma viagem ate parecia o novo filme "Maria Mercedes no pais das maravilhas"
Bonito relato electrizante e erotico, gostei

Bjs

Natureza disse...

as tuas descrições envolventes como sempre!... ainda bem que voltaste!

Viajante pelos Sentidos disse...

Grande trip... Muito sensorial, alucinantemente descrita. A minha escrita é simples, a tua é complexa... e fantástica!
Senti-me no rodopio das estrelas, da droga, do tesão... uau.

Um beijo viajante!
Obrigada pela visita, volta sempre!

aqui-há-gato disse...

Grande grande relato:)
Está lá tudo...
Só falta o Gato ao volante do taxi amarelo...:)
Tens lumes?


O Gato

Shelyak disse...

Que bom que é viajar pelo mundo da fantasia, num texto que nos faz ler tão devagar, absorvendo e saboreando cada palavra...
A música, essa, perfeita e que nos leva a outros mundos...
Beijinho que aqui deixo...

Anónimo disse...

Como este mundo é pequeno... Por pouco que não nos cruzámos, poderíamos até ter estado sentados lado a lado no red couch. A Nico tinha-me convidado para a acompanhar numa das suas conversas com o Lou Reed, precisava muito de apoio pois estava muito angustiada tal era a pressão do Andy para que participasse com os Velvet no seu primeiro álbum. Alguém que eu não me recordo agora, talvez o John Cale que também estava envolvido na nossa argumentação no meio daquela alucinada azáfama, me falou numa radiante morena que tinha passado pelo estúdio com um vestido encarnado ás bolinhas, muito sevilhano por sinal. Sim foi o John Cale sem dúvida. Recordo-me agora que ele não conseguia falar de mais nada senão de ti. Recordo-me até de ele estar a ensaiar uns acordes para uma canção sobre ti. Sim e de a Nico e o Lou terem ficado muito entusiasmados, claro que Femme Fatale foi inspirado em ti, isso é agora tão óbvio para mim. Parece que ainda estou a ver a Nico a cantar a tua musica...


(bolas mulher, que coisa boa de ler esta que tu aqui nos deixaste...e a musica, foi aqui que o rock and roll realmente começou, é onde todos vão ainda beber)

Maria Francisca disse...

tudo...mas tudo Perfeito!
Um beijo

Alguém Comum disse...

Ai, ai, ai (suspiros)

Até me faltaram as palavras para comentar.

Beijo grande

PHOTO disse...

Bela escrita!!!E... bela NY.

RASTINOV disse...

Ler, (re)ler e viajar...
Embora tardio o meu obrigado pela inclusão do Setting poético no teu blog

aqui-há-gato disse...

Os Gatos são capazes de tudo...
Até conduzir... Táxis Mercedes amarelos com faixa preta de xadrez...


O Gato

Man in Rose disse...

partindo do pressuposto que as fotos são tuas e que a cabeça de quem escreveu este belo texto, confesso que prefiro as fotos e a cabeça....bravo

eudesaltosaltos disse...

bela viagem... bela sobremesa... :) b-ano. bj

O Profeta disse...

Ler-te é um processo elevado ao fantástico...


E a viagem começa
Sem rumo nem distância
Serei timoneiro de alva barca
Pelo rumo da tua lembrança

Mar de sonhos mil
Oceano de tanta contradição
A ternura invade o caminho
Que leva ao teu coração


Bom fim de semana


Doce beijo

Kinky disse...

Sabes este poste soube-me tao bem quanto um rico bolo de chocolate....

um beijinho humido...

p.s. voute adicionar ao meu blog, posso?

Abssinto disse...

Bemmm!Acerca deste rico texto permito-me parafrasear o Fitzgerald:

Um diamante do tamanho do Ritz.

;)
Bisou

almasgemeas disse...

Gostei do blog...É sempre bom descobrir cantinhos assim

http://www.duasalmasgemeas.blogspot.com/

eudesaltosaltos disse...

Diz que até não é um mau blog... passa pelo meu blog e confirma. bj

mixtu disse...

uma viagem real ou a sonhar?

abrazo serrano...

como a maluca diz que não és mau blog, como o meu, vim ver...

Anónimo disse...

Uau...

Que grande aventura... e principalmente deliciosamente bem escrita.
Beijo
Vy

Silêncio © disse...

Já tinha saudades destes teus belos textos.
Deixo-te um beijo e um abraço

Red Light Special disse...

Estou estarrecida contigo!
FABULOSO este teu texto!!!
Beijo e obrigada por este momento...

Anónimo disse...

k viagemmmmmmmmmmmmmmmmmmmm.... de onde vem tanta imaginação????
Beijo doce

Anónimo disse...

Sensorial.UAU!!

Um beijo,bela mercedes!

[A] disse...

underground...de veludo
um relato verdadeiramente feliz?
;)

Pekenina disse...

Confesso a minha ausência durante muito tempo...Mas sem dúvida que a espera valeu a pena! Agora vou deliciar-me com o que ainda me falta ler :)
Beijinho*

 
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