17.2.08

O PROJECTO

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Sentia-me como se fosse a personagem dum conto fantástico, daquelas que figuram nas antologias dos livros de paperback. Era bom de mais para ser verdade, mas a realidade superava a fantasia imaginada ou escrita. O sentimento de estranheza inicial, há muito que se desvanecera, e agora era o tempo da normalidade extraordinária. Foi sem esforço, que me lembrei do momento em que a minha vida, começou a trilhar esta linha de tempo tão diferente.
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Olá, chamo-me Carlos Mandelbrot, sou professor de Física Teórica em Nova Iorque e gostava de construir no Algarve uma casa desenhada por si. Tinha sido assim, sem mais nem menos. Ainda perguntei se era da família, respondeu-me que, Não, o nome é uma homenagem do meu pai. Alem disso, dedico-me à Física de Partículas e não aos fractais, embora tudo esteja ligado. E como é que chegou até mim, perguntei curiosa, intuindo na altura qual ia ser a resposta. Puro acaso, fui à lista amarela, escolhi um nome ao acaso e voilá! Aceita ou não? Abandonei-me no Caos e respondi que sim.
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Começámos por jantar todas as semanas. Os primeiros foram muito formais, comigo sempre a tirar notas e a fazer perguntas. Um físico teórico, de partículas, quase sempre a falar de cordas e super cordas, buracos de verme e energia de Planck, não é propriamente a pessoa ideal para se falar de salas com lareiras, escadas e casas de banho com retretes e duches. Até me sentia bastante pequena, quase diria uma partícula, ao perguntar-lhe sobre essas coisas tão mundanamente pueris e banais.
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Continuámos com os jantares semanais, cada vez mais íntimos, até que os transferimos para o meu atelier. Tinha reservado uma pequena sala só para este projecto. Era uma sala onde cabia apenas um estirador clássico, daqueles em madeira, da defunta Olaio, mais o clássico banco alto. Tinha desenterrado a minha velha máquina de desenhar, os esquadros e escantilhões de curvas, os compassos e um conjunto seco e empedernido de canetas Rotring. Essas e as borrachas, tive que as comprar de novo assim como um rolo de película de desenho. Não foi tarefa fácil encontrá-las nestes tempos de desenho feito em computador. Mas eu queria assim. Aquele projecto precisava do meu toque, orgânico e pessoal, a evoluir dia a dia como se de um fractal se tratasse.
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A ideia surgiu-me enquanto deambulava à noite no passeio marítimo, e olhava para o céu estrelado. Imaginei cada estrela como se fosse uma partícula gerada por uma colisão, e imaginei as linhas formadas a partir dessa colisão. Era uma imagem dejávu, e fui a correr para casa e não descansei enquanto não encontrei uma fotografia feita no CERN. Era uma foto de um bóson de Higgs, criado a partir de colisões de protões. E decidi projectar a casa a partir do desenho base da trajectória das partículas resultantes da colisão. Quando transmiti ao Carlos a ideia, abrimos umas garrafas para comemorar. Acordei no dia seguinte, com uma dor de cabeça do tamanho de um acelerador de partículas.
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Na primeira visita à obra, detectei a olho nu uma série de erros na localização dos pilares estruturais. Pedi ao topógrafo para me fazer um levantamento dos mesmos enquanto tinha uma discussão quase que inglória com o empreiteiro, o Sr. Ramos. Quase a chorar, expliquei-lhe que se a casa começava assim, ia ficar tudo torto e mal feito, porque os círculos das paredes tinham os seus centros deduzidos a partir dos pilares iniciais, e se estes estavam desalinhados nada encaixava depois. Olhou para mim com olhos de não sei do que está a falar minha senhora. Voltei para Lisboa com o levantamento dos pilares. Só me vinha à cabeça a cena do filme The Fountainhead, com o Gary Cooper a explodir o arranha-céus que estava a ser mal construído.
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Nessa noite, levei o Carlos até à salinha privada onde guardava os desenhos da casa, e expliquei-lhe com a emoção ao rubro o que se estava a passar. Foi a noite em que me secou as lágrimas de raiva com beijos ternos e lânguidos. Foi a noite em que me fez sentir rainha, apesar da minha nudez. Foi a noite em que nos amámos pela primeira vez. A nossa cama foi o estirador, os nossos lençóis, as folhas com os desenhos do projecto.
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No dia seguinte, como de costume, antes de começar o dia no atelier, dedicaria uma hora ao projecto do Carlos. Entrei na salinha privada com os desenhos espalhados pelo chão, com excepção do esquisso original com a planta da casa. Ainda continuava preso ao estirador. Encontrei a folha final e coloquei-a por cima para desenhar as alterações e ver o que podia fazer. Para meu espanto, a folha estava diferente na zona que já estava em construção. Comparei com o levantamento e era igual. Fiquei perplexa, e só então notei que por cima da zona alterada do desenho, uma mancha de esperma brilhava. Como a folha era de película de poliéster, fui buscar algodão e cotonetes e limpei tudo. Ao limpar a folha do esperma, acabei por limpar os traços do desenho. Olhei de novo para a planta e decidi passar por cima o bocado do desenho original que tinha apagado. Tinha que voltar à obra e obrigar o Sr. Ramos a partir o que tinha feito mal e fazê-lo de novo, bem. Para não perder tempo, telefonei-lhe e cheguei à obra ao fim da manhã.
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Sr. Ramos, desculpe lá, mas vai ter que partir aqueles pilares e fazer de novo, ia dizendo enquanto nos dirigíamos para o local. Mas Senhora Arquitecta, os pilares estão implantados como estão no projecto, a Senhora ainda ontem me elogiou pelo facto. Olhei feita sei lá o quê para ele, pareceu-me na altura diferente, e balbuciei, Elogiei? Chegámos ao local e os pilares estavam implantados na perfeição. Tirei medidas nos eixos, triangulações e alinhamentos, e tudo estava milimétricamente exacto. Demasiado exacto, pensei na altura. Despediu-se de mim com um caloroso aperto de mão, e um Bom dia para si cara Arquitecta. Fiquei sem saber o que dizer no sorriso flácido.
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Duas semanas depois, na véspera de nova visita à obra, fui relembrar os alinhamentos e qual não foi o meu espanto ao verificar que novos pilares estavam fora do sítio. Dois estavam ligeiramente e outros dois estavam bastante. Como podia ser, na planta que tinha visto há duas semanas estava tudo certo com o esquisso original. Seria que na obra tinham executado mal, e isso por qualquer razão, tinha-se reflectido na planta final. Recusei-me a aceitar essa hipótese. Passei o dia todo a pensar no sucedido. Carlos telefonou-me a antecipar o jantar para essa noite. Tinha que estar em Nova Iorque no dia seguinte, para proferir uma conferência sobre a simultaneidade quântica de certas interacções a nível subatómico. E uma ideia bastante irracional nasceu na minha baralhada consciência.
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Jantámos no atelier, como sempre. Desta vez, presenteou-me com uma lagosta já preparada, acompanhada com Rice and Beans à moda do Belize. Para beber, insisti no politicamente incorrecto tinto Cryseia de 2003. Tinha uma caixa no atelier, oferta dum cliente, e já só restavam duas. Nessa noite acabou-se a minha reserva, e concretizei a minha ideia. Depois de fazermos amor, não me lavei, e quando cheguei a casa, recolhi todo o esperma que tinha dentro de mim e guardei-o num frasco hermético. Digamos que, para uma céptica empedernida como eu, não estava nada mal este ataque de irracionalidade.
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No dia seguinte, repeti o procedimento da última vez. Apaguei do desenho os pilares mal posicionados, com o algodão e as cotonetes embebidas de esperma, e desenhei-os de novo na posição correcta. De seguida dirigi-me à obra. O Sr. Ramos recebeu-me triunfal no seu fato azul-escuro, estilo desportivo. Bem vida, minha cara. A obra está a desenvolver-se a um ritmo bastante bom e até já arrancámos com as alvenarias. Está a dar-me muito gozo ir descobrindo o seu projecto à medida que construímos. Até parece que estou a revelar uma fotografia a três dimensões. Desculpe, como disse? Articulei com esforço. Aquele não era de certeza o Sr. Ramos do início da obra, pensei. O que eu quero dizer, é que vamos construindo naturalmente, como se a obra fosse um organismo vivo a crescer, quase que diria um...Fractal, quase que gritei no meu espanto. Isso, um fractal, completou num sorriso luminoso. Fiquei para morrer.
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Na última visita que fiz à obra, dias antes da festa da inauguração, o Engenheiro Ramos, recebeu-me com um só beijo na face, radiante no seu fato Hugo Boss cinza claro e camisa frisada rosa velho. Então, minha querida? Contente com a nossa obra? Satisfeitíssima, respondi, e não estava a ser meramente simpática. Efectivamente, nunca uma obra minha, tinha sido construída tão fielmente ao projecto como aquela. Acho que nos entendemos bastante bem, continuou. Até que podíamos fazer uma sociedade, que achas? Embora achasse o que achas, um pouco deslocado no discurso, pensei cá para comigo, Porque não?
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Deixei de aceitar encomendas de projectos, e passei, passámos, a construir os nossos projectos. Sempre muito bem construídos, e sempre com muito amor nos desenhos!
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26 comentários:

luafeiticeira disse...

É tarde e o texo é grande, virei lê-lo com mais tempo. Vim avisar que acertaste em relação á dica do Obélix.
beijos

Jaime disse...

Olha, fartei-me de rir! Agora já sei o é que uma contribuição seminal. :-)

Esta caótica e humanamente imprevisível aparição de um Mandelbrot no teu blog estava já inscrita nas condições iniciais? Impossível! :-)

Acho que vou passar a utilizar a expressão "uma dor de cabeça do tamanho de um acelerador de partículas". Essa casa fez-me lembrar o "Astérix e Cleópatra".

PHOTO disse...

Cara Mercede já era tempo para guardar essas rotring e agarrar-se ao AutoCAD ou Archicad ;)

Devaneante disse...

... de como do caos se faz ordem...

Gostei!... como sempre!...

PS: cuidado com essas dores de cabeça!... ;-)

Abssinto disse...

Delícioso, pá! E gostei muitíssimo da cara arquitecta;)

bj

PDuarte disse...

Ampliei a fotografia e verifiquei que a casa do Carlos tinha um terraço com 3.25m2 o que é realmente uma boa área para terraço.
A descrição do pato bravo, neste texto, está muito favorecida
Beijinho Maria.

Patricia Gold disse...

Hola Maria Mercedes!

Hay algo para voce en mi blog..

beijos

Patry

Unknown disse...

Hola, querida amiga. Paso sólo un momento a saludarte porque ando algo apurado pero ya hace tiempo que no te visitaba. Un beso y mi cariño,
V.

Anónimo disse...

Olá Querida

Voltei a tempo de ler mais um texto delicioso.
Adorei a evolução (crescimento fractal) do pato bravo para engenheiro, com fato Hugo Boss e camisa frisada, ao mesmo tampo que a casa do Carlos ia crescendo...

beijocas da Isadora

un dress disse...

as ondulações da vida!

...esperem-se então os seus projectos pra nós.

os que de todo não projectámos, aqueles que surgem assim

traçados

desse aparente acaso!

como aqui escreves....:)





.beijO

Anónimo disse...

Os 1000 e 1 recursos dos arquitectos, até parece que isto é fácil. Pois no meu caso, não só apenas hoje consigo fazer um breve comentário apesar de ter lido o teu texto pela primeira vez no domingo à noite, como também nunca utilizei o meu antigo estirador de faia da Olaio para outra coisa que não desenhar quilómetros de linhas. Quanto ao Cryseia 2003, te garanto que não me queixo dos meus clientes mas, bolas, vou passar a ser mais exigente.
De resto e para não variar, cara colega Maria Mercedes, para mim este teu conto é muito mais do que apenas interessante e curioso, nem sonhas o que me vai na cabeça para o comentar, talvez numa outra oportunidade.

Heduardo Kiesse disse...

Adorei o texto...! muito bom mesmo!
um grande beijao!

D. Sebastião disse...

Só da tua cabeça saia uma destas.

parabéns

Viajante pelos Sentidos disse...

Fantástico!!!
Mas isso também já não é novidade... arquitecta de casas, de fractais... de PALAVRAS!

Uma belíssima construção!

(o pormenor do esperma... ui!)

Um beijo viajante!

danizitha disse...

Olá, tudo bem?
Bom em 1º lugar, desculpa a invasão

vi o link e resolvi entrar e a verdade é que gostei da cá entrar...
se passares pelo meu, vou adicionar-te aos meus link's para passar por cá com mais regularidade

beijinho,
fico à espera.



p.s.: no meu tem dois blog's, o prado da borboletazinha é só meu e o outro é com o meu namorado

Shelyak disse...

Tanta coisa que aqui se junta, num prato que, no final, fica maravilhoso...
Li a primeira vez, com alguma sofreguidão, para depois voltar, devagarinho, saboreando cada palavra, cada sentido... da foto, nem falo...:)
Beijinhoooooo

Alguém Comum disse...

Bons projectos exercitam a mente e... dão mesmo gozo.
Belos pensamentos aqui descritos.

Anonimo do Algarve disse...

Por acaso foi uma má escolha de construtor, p proxima é só pedir ajuda, passei p coisa semelhante.
Já agora fazer amor na obra tb é muito bom.


bjs

Anónimo disse...

...tenho que tirar o meu chapéu ali ao Shelyak pois foi o unico que teve o bom senso de se referir à belissima fotografia que ilustra este conto...

M. disse...

O teu blog é "potente"!!

Dsclp a invasão!!

Bom fim de semana, bjinhx

***

luafeiticeira disse...

bem, o meu homem é que é desenhador, crio que não atira esperma para os desenhos, porque são feitos no autocad, vou dizer-lhe a ele para ler.
beijos

Amante da Vida disse...

Excelente Projecto ... execução sem defeitos... continua a agradar-nos
Beijos

danizitha disse...

vou adicionar este blog aos meus links
grandes textos :)
es tu q escreves?

beijinho

ContorNUS disse...

Gostei de te ler...

a agora percebo a comparação da folha ressequida com edifícios abandonados... a arquitectura mora em nós ;)

luafeiticeira disse...

Beijinhos de Mme Agecanonix

carpe vitam! disse...

a imaginação faz magia!

 
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