15.5.08

FILHO DA MÃE DO ARTURO PEREZ-REVERTE

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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Leu na página trezentos e quarenta e um, oitava linha a contar de cima, do romance que estava a ler, O Cemitério Dos Barcos Sem Nome. Finalmente encontrava uma frase que traduzia o seu estado de espírito sempre que pensava nela. Por isso evitava falar-lhe. Por isso evitava escrever-lhe. Por isso evitava pensar nela.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Por vezes havia uma linha que valia pelo livro todo. Esta era uma delas, pensou. Filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte. Com esta linha passava, na sua consideração, à frente do Jorge Luís Borges. E gostava do Borges como se fosse a sua sombra. Por vezes andamos uma vida inteira a bater com a cabeça nas paredes, e a chave para a porta de saída da sala em que nos encontramos, está numa simples linha escrita por outrem. O romance até que não era nada de outro mundo, aparte o facto de estar escrito por alguém que gosta do mar, que gosta de sentir o vento na enxárcia e se sente desconfortável quando tem a costa a sotavento.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Efectivamente, era esse sentimento que sempre o pusera desconfortável. Tornava-se claro para ele que tudo tinha sido um equívoco bem desagradável. Amava-a estupidamente, pensou. Porquê? Vá lá saber-se? Alguma vez foi bem-vindo? Alguma vez seria bem-vindo?
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Que é que este agora quer? Ouvira uma vez na fracção de segundo que antecedeu o telefonema por atender. A mensagem era clara como a água na baía de Karavostasi. Só não entende quem não quer! Fizera loucuras por ela, sofrera e chorara como um cão louco na ausência do dono. O amor tornara-se doença. Doença, porque não era retribuído. O amor nunca pode ser unilateral, pensou, senão apodrece e transforma-se em algo doente.
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Não quero mais amar-te, porque sei que não sou bem-vindo, ouviu no seu interior. Se o fosse, a vida sorriria mais, a nostalgia que vem com a solidão não faria sentido e a própria solidão deixaria de ser. Sentia amargura por ter sido tão estúpido e ingénuo. Provavelmente para ela, ele tinha sido mais um, mais uma experiência que não tinha resultado, ou mais uma desilusão que o ser perfeito que ela pensava que era, tivera no decurso da sua vida iniciática em direcção ao ser sublime. Era isso, tinha falhado na encarnação do ser perfeito, concluiu com alguma ironia.
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Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas tolerado. Mais uma vez leu a linha que luzia na página trezentos e cinquenta e um, oitava linha a contar de cima e fechou o livro. Sentia-se como se tivesse lido todos os livros escritos e por escrever. Lembrou-se novamente de Borges e da Biblioteca de Babel. Sempre Borges e o duplo. Sempre a comunhão com o absurdo da existência. Recordou uma vez mais aquele amor que se tornava cada vez mais distante e num último beijo dizia-lhe, Quando sentires que sou bem-vindo, e não apenas tolerado, chama-me no comprimento de onda do amor que tudo purifica. Chama-me e nesse preciso instante verás que estou a teu lado. Serás sempre bem vinda!
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Filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte, tinha que lhe escrever a agradecer a linha que tinha escrito para ele. Não se conheciam, mas ele sabia que aquela linha era para ele, só podia.
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20 comentários:

Alberto Oliveira disse...

Estejas no adormecimento do Mar da Palha ou no pesadelo do Cabo das Tormentas, escrevo-te de terra firme, para que a letra não me trema.
Ainda surpreso, e antes que me escrevas a agradecer, decidi fazê-lo primeiro que tu, pois se um de nós deve agradecer alguma coisa a alguém, sou eu.
Sim, estou-te reconhecido, pois pela primeira vez na minha vida de envolvimento com as letras, fiquei a saber que uma linha -apenas uma linha! de milhares e milhares das que escrevi, pode vir a transformar a vida de uma pessoa. Já nem refiro a tua opinião que passei a perna ao Borges! Isso fica para degustar (e reler) a sós, fora das vistas e ouvidos de quem observa na vaidade um pecado passível de castigo divino.

Gracias Y saludos do

Arturo Pérez-Reverte

luafeiticeira disse...

Realmente, escreves muitíssimo bem, consegues fazer dum tema que se transmite em poucas alavras, como o amor não correspondido num texto poético que poderia ser uma introdução, uma boa introdução duma obra prima da Literatura. Aqui está alguém que tem um blog, mas que poderia publicar romances.
beijos

ANTONIO SARAMAGO disse...

Ando sem tempo, mas não quiz passar sem te visitar e deixar um beijinho em sinal de que não estou esquecido deste belo cantinho

luafeiticeira disse...

Há um blog, para mim dos melhores, que precisa que lhe deiam força. Vai vê-lo no meu blog, por favor.
Beijos

osátiro disse...

Bem escrito!
E q blog é esse?

Heduardo Kiesse disse...

NA PERFEIÇÃO!!!



PARADOXOS

RC disse...

:))))

Xi (música gostosa)

Lyra disse...

Ler-te é uma viajem a muitos interiores...Ao teu, ao meu...ao deles...

A escolha do livro foi excelente pois é, além de tudo, uma verdadeira homenagem ao mar "(…) depressa as estrelas brilharão inutilmente sobre o mar, porque os homens já não precisam delas para procurar o seu caminho.
- Isso é mau?
- Não sei se é mau. Sei que é triste."

Beijinhos e até breve.

;O)

Anónimo disse...

Que mar de calmaria. Li uma paz... (Sempre bem contado)

bj
absinto

Devaneante disse...

Por vezes acontece... lemos uma frase, um parágrafo, e às vezes um livro inteiro, e achamos que foi escrito para nós... e foi!...

Um beijo!

O Profeta disse...

Solta nota de uma flauta
Um retrato preso à mão
Um tambor fora do compasso
Segue o bater de coração


Convido-te a partilhar as emoções
Deixadas pelos ponteiros de um relógio…


Boa semana


Mágico beijo

Jaime disse...

A nossa frustração relativiza-se quando a encontramos escrita por outro, a literatura humaniza-nos ao nos demonstrar que não somos os únicos. Se não é um sentimento dos mais nobres encontrar conforto com a "desgraça alheia", também é verdade que passamos a conhecer-nos melhor, e isso vale sempre a pena.

Maria, tens um blog topo de gama, um verdadeiro Mercedes da blogosfera. :-) Beijinhos.

Shelyak disse...

Saudade...:)

ContorNUS disse...

cumplicidades...excelente a sonoridade de fundo ;)

un dress disse...

triste: como tambor a

soar no caldo:

vácuO

de

existir ~







beijO

izilgallu disse...

Muito bom seu blog, bem escrito, parabéns
izil

Flávio Dantas disse...

me transmitiu uma paz...

Lyra disse...

Passei por aqui apenas para te deixar um beijinho.

Até breve.

;O)

Cúmplice... disse...

Li-Te... E apetecia-me dizer...
(Filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte)

Um Abraço!....

Anónimo disse...

A verdade, Maria Mercedes, é que não sei como corresponder ao prazer que retiro com o que tu aqui partilhas connosco.
Tenho ensaiado vários comentários como aqueles antigos que te fiz e que aparentemente tanto apreciaste. Mas sinto-me derrotado à partida, opto pela rendição incondicional e deixo-me transportar.
Sei que não é preciso muito, se sei. No fundo, é como a linha do filho da mãe do Arturo Pérez-Reverte.
Fica a promessa de tentar ser mais corajoso e aventureiro no futuro, e um beijo também.

 
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