8.5.08

O DEMÓNIO DE DAGUERRE - (Reprise)

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O fim de tarde era nosso, e a luz que entrava pela janela do estúdio também nos pertencia. Lá fora a tempestade, cá dentro a música cálida de quente do quarteto de jazz de Sophie Milman. A preguiça do desejo, é algo que me excita devagarinho. Quero-te, mas não é já. Quero-te daqui a pouco, quando a preguiça se transforma em lascívia e o olhar transpira carícias antecipadas.
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Preparas a máquina e os rolos com uma precisão quase demente. O teu fotómetro mede a luz ambiente, perscrutando as penumbras e as zonas de luz como se fosse uma sonda espacial à procura de vida num planeta estranho. A tempestade aproxima-se e a Sophie canta, I feel pretty / Oh so pretty / I feel pretty and witty and gay...Olhas para mim no olhar hesitante do desejo adiado. Vence o demónio de Daguerre. Sorris para mim e dizes para me descontrair.

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Alargo a preguiça e começo a desnudar-me. Sabe-me bem sentir os seios na nudez repentina. Começo a ficar molhada de antecipação. Sabes que fotografar-me é como fazer amor comigo. Cada click uma penetração, suave por vezes, bem funda por outras. I feel charming/Oh so charming/It's alarming how charming I feel/And so pretty/That I hardly can believe I'm real., continua a voz que dança na luz difusa que ainda ilumina o estúdio. Um relâmpago, antecipando o trovão ainda longe, acende o tecto como se estivesses a usar o flash. Não evito um arrepio. Não é do frio, deve ser da electricidade suspensa no ar cada vez mais húmido do dia que finda. Parece que o dia chora por se ir embora.
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Mudas o rolo para um mais sensível. Sei que queres apanhar a luz e sombra da tempestade que substitui o teu flash. Cantas em uníssono, Such a pretty face / Such a pretty dress / Such a pretty smile / Such a pretty me! E disparas o obturador no preciso momento em que o relâmpago me inunda de luz, no ribombar do trovão em simultâneo.
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Sinto os mamilos a ficarem rijos, a nuca na tontura inversa e o meu sexo quase orgásmico a diluir-se no escuro que me começa a envolver. Deixo de te ver e por fim deixo de me sentir. Apenas te ouço, bem longe, muito longe. E sei que me procuras...

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Começo por rejeitar a ideia de estar dentro da Nikon F2S, impressa no rolo de 35mm como mais uma imagem capturada ao meu ser real. O negro é total, mas sinto o movimento e os sons no exterior. E acabo por aceitar a irrealidade da situação. Sou uma mera impressão na prata que reveste a película perfurada. Lembro-me de em tempos te ter pedido para me revelares o desejo, e tento chorar, mas não consigo. As imagens não choram.

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Sinto-me enrolar em mim, como um feto, para de seguida me mergulhares num líquido morno e viscoso. Na minha realidade complanar, começo a sentir a transformação química que me aproxima do teu mundo. Sinto a luz no momento em que mergulho no turbilhão da água corrente. É quase um nascimento, não consigo gritar mas entendo a tua excitação bem próxima de mim.

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A luz branca queima-me o corpo em negativo, e percebo que me projectas para o papel sensível colado na parede. Ajustas o foco e o meu corpo de luz oscila no foco. Lembro-me daquele filme do Woody Allen em que um dos personagens aparece sempre “out of focus” e peço-te, imploro-te até, para que me não desfoques. Eu sei que não serve de nada, mas peço-te na mesma.

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Finalmente a minha imagem é projectada através dos filtros de cor e impressiono o papel na parede. Volto a ser uma imagem virtual, uma promessa de ser, e novamente espero que me reveles. Aproximas-te com uma esponja e começas a revelar-me por fim. Primeiro a cabeça, depois, demoras-te um pouco nostalgicamente nos seios e por fim o resto do meu corpo arrancado ao fim do dia quase perfeito. A imagem acabou de se formar mas ainda continua presa ao papel. Grito-te no desespero para me tornares real. A tua mão começa por me acariciar os seios planos, continua desenhando o contorno do meu corpo, pára por instantes no sexo e volta aos seios. Colas-te a mim na saudade, e por fim beijas-me os lábios salgados da revelação. E tornas-me real no relâmpago inverso da paixão de nós. Agora posso chorar de novo!
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(texto editado no Excitações - Primeiro Set)
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28 comentários:

GAGGINGyou disse...

Ler-te é sempre uma revelação...por vezes fotográfica. Os teus textos são sempre uma pelicula pela qual te vemos na transparencia ...do lado de lá...para além da imagem cravada a luz.

Um beijo

Alberto Oliveira disse...

... guardou a Nikon, arrumou o material de revelação, apagou as luzes e passou-lhe um lenço acompanhado de uma frase banal "Podes limpar as lágrimas que está lavado."
"Que mania a dos homens que conheço: sempre que me emprestam lenços, garantem que não se assoam... " pensou ela. Ele aguardava impaciente para sair do estúdio. "Não me levas?" inquiriu ela, ainda com uma última lágrima teimosa a rolar pela face e na expectativa que o romance não acabasse ali, inopidamente. "Achas que sou maluco? Levar agora para a rua uma fotografia com uma mulher nua! para me chamarem tarado... Ela fez um sorriso entre o triste e o irónico e retorquiu já vencida "Ora ora. Como não soubessem que só representas papéis de fantasia."

Sorrisos e óptimo fim de semana.

Jaime disse...

Não conhecia o primeiro set do Excitações, por isso, olha, só tenho de te agradecer por nos teres novamente revelado este belíssimo texto, e também um pouco mais de ti. Beijinhos de quem te admira.

Alberto Oliveira disse...

... inopinadamente era o que eu queria escrever. Com a confusão de arrumar o material fotográfico, lá se foi uma consoante e uma vogal para o maneta... que desta vez não lucrou muito com isso.

beijinhos.

Heduardo Kiesse disse...

Amiga Mercedes! Uau!! Poderoso texto salpicado com sensualidade... E... Bem, diria que se a leitura é um climax entao eu tive um!

Edu

luafeiticeira disse...

Pois, fala-se muito de voyeurs, mas esquecem-se do prazer em ser-se visto, que nomes daremos a isso?
Olha, já agora, informo-te que o voo sobre o ninho de cucos continua... Pois, já esou melhor.
beijos e bom fim de semana.

Flávio Dantas disse...

seus textos sao muuuito bons!!

Daniel disse...

Olá Maria Mercedes

Um belo texto, uma imaginação interessante, baseada na fotografia.
Achei curiosa a viagem até aos daguerrieotipos.
Valeu a pena passar por aqui.

Daniel

Adore disse...

Nunca tenho palavras para descrever o que sinto ao ler-te... por isso muitas das vezes leio-te mas não me pronuncio. Mas continuo a ser uma leitora assídua.

beijinhos
bom fds

lalisca.cs-life disse...

Até eu senti o flash!!
Adorei, onde andavas nunca dei contigo!!
vou linkar te!!

beijinhos

Anonimo do Algarve disse...

É sempre um prazer passar por aqui e ler os seus textos, e ver as lindas fotos.

Bjs e bom fim de semana

un dress disse...

metaforicamente descendo

subindo

real ~~





beijO

Lyra disse...

Bom, simplesmente penso que se Daguerre te lesse ficaria orgulhoso e ...excitado (risos).

Beijinhos e até breve.

;O)

Marrie disse...

Acho q já tinha lido este teu texto.
Maravilhoso, como sempre.
bjs

PS: Será q vc poderia me dizer como fazer p/q a foto do cabeçalho tome todo o espaço, assim como no teu? Já tentei de todas as formas, mas só fica pequenina ao centro ou do lado. Será q tem a ver com a foto. Quem sabe vcs não me dão uma ajudinha! hãhãhã
rsrs

PDuarte disse...

Comentar os teus textos é a única forma de te dizer que cá estive e li.
Li não.
Bebi.
Os teus textos bebem-se.
Mas às vezes tenho vontade de não o fazer porque penso que comentários às imagens que nos lanças são só sombras que as desfocam.

Devaneante disse...

Sem palavras, amiga Maria Mercedes!...

Divinius disse...

Muito bom...
:)

Peach disse...

sexy sexy sexy... transpiras sensualidade querida amiga!

beijoss muitos!

Lyra disse...

Hoje estou muito bem disposta, por isso quero apenas partilhar esta emoção deixando aqui um grande beijinho. Quero desejar-te uma excelente semana e agradecer as palavras e amizade que tens depositado no meu...caos.

Até breve!

;O)

D. Sebastião disse...

Ainda me lembro...

Malena disse...

María Mercedes, has demostrado que a partir de una fotografía puede crearse todo un mundo de sensualidad.

Gracias por pasar por mi blog. Es un placer conocerte.

Um beijinho

danizitha disse...

estes textos sao tao linds x)

jorge silva disse...

muito bonito este "demónio de daguerre".

parabéns!

Anónimo disse...

A minha vénia......:)

JOTA ENE ✔ disse...

Maria, notável este texto, onde misturas fotografia com sensualidade ...

... mais, o rolo aqui confere-lhe ainda mais sensualidade, não me perguntes porquê? mas é a minha sensibilidade.

Bom f-d-s ... e,

Beijos fotografados!! ;-)

carpe vitam! disse...

oh, maria, revelaste-me as saudades da câmara escura! Sim, lembro-me do positivo desta foto no primeiro set do excitações, que foi feito dele, por que desapareceu?
Que texto belíssimo, como sempre, aliás, mas este tocou-me especialmente por me lembrar a câmara de cartão, os daguerreótipos, as cianotipias e as experiências laboratoriais com papel fotográfico... talvez escreve sobre isso um dia destes :)

Cúmplice... disse...

Sem palavras...
E eu que também adoro fotografia!...

As Tuas Palavras ficam impressas na memória como uma imagem na película fotográfica...

Excelente!...

Laura Ferreira disse...

gostei imenso...

 
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