18.6.08

AGFAPAN QUATROCENTOS

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Pelo brilho do olhar e pelo sorriso a roçar o infantil, ela soube-o feliz quando chegou a casa, trazido pelos últimos raios de luz que teimavam em prolongar o dia, naquela hora suspensa entre dois mundos. Sorriu na expectativa do beijo distraído com que ele a presenteou, servindo de introdução ao discurso excitado e quase ininteligível do que lhe tinha acontecido. Como costumava fazer nessas situações, olhou-o bem nos olhos, beijando-o longamente, até o distrair dele próprio e serem, uma vez mais, aquele todo que os mantinha ainda na linha de partida, após tantos anos de vida em comum.
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Levou um dedo aos lábios em sinal de silêncio, sentou-o confortavelmente no velho sofá vermelho e recolheu-se na cozinha em busca da garrafa de tinto e dos copos de cristal. Para ocasiões especiais, vinho e copos igualmente especiais, pensou no sorriso que lhe aflorou aos olhos, a ponto de quase os cerrar de alegria. Ao fim de todos aqueles anos, ainda sentia as descobertas e triunfos dele como se fossem também dela. Seria que com ele acontecia o mesmo? Gostava de pensar que sim, mas sabia que ele era bem diferente. E ainda bem, pensou para consigo enquanto voltava à sala.
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Então diz lá o que te aconteceu, para chegares a casa como um puto, que conseguiu o último cromo da colecção dos jogadores da bola? E recostou-se para o ouvir, deliciada, enquanto aflorava o cálice de vinho, como se fosse uma preciosidade. Conta lá, repetiu, Mas conta devagarinho, bem devagarinho para eu saborear com prazer.
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Ele sorriu, arqueou as sobrancelhas duas vezes, naquele gesto tão característico dele, e começou por dizer. Lembras-te do meu avô artista gráfico? Aquele que também era fotógrafo e tinha uma litografia? Lembras-te de eu te dizer que quando ele morreu, a litografia estava nas ruas da amargura e os credores levaram tudo, ficando apenas os poucos desenhos originais e álbuns de fotos que ele tinha em casa. Tudo o que estava no local de trabalho, e era quase tudo o que ele tinha feito ao longo da vida, acabou por desaparecer na voragem dos credores. Venderam o que puderam e destruíram tudo o que não tinha valor comercial. Bom, quase tudo, como acabei por descobrir hoje, num golpe de acaso e sorte.
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Descobriste coisas do teu avô? Aonde? Perguntou-lhe cheia de curiosidade. Não vais acreditar, mas foi num leilão, ali para os lados da rua do Loreto, ao pé do Largo do Camões. Ainda existe uma casa muito antiga, que vende jóias e relógios, mas que dantes também era uma Casa de Penhores, como lhe chamavam. As pessoas quando estavam aflitas de dinheiro, empenhavam jóias, relógios, máquinas fotográficas e todo o tipo de coisas que dessem dinheiro. Quando se recompunham financeiramente, iam lá buscar o que tinham vendido e pagavam um juro correspondente. Foste a um leilão numa casa de penhores? Perguntou cada vez mais cheia de curiosidade. Fui, fui, estava interessado numa antigas Hasselblade que iam para venda, juntamente com uma série de tralha bem antiga que ainda estava nos armazéns da loja. Estavam a leiloar tudo. Os donos já estão bem velhos, os filhos estão-se a borrifar para o negócio e segundo consta, têm uma oferta de um banco para fazerem ali mais uma agência. Vi o anúncio e decidi lá ir dar uma vista de olhos.
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Conta mais, conta mais, pediu ela sofregamente, com a curiosidade quase a matar o gato. Ele sorveu deliciado mais um gole de tinto, encheu o peito na pantomima e contou que, Embora eu só estivesse ali para ver se conseguia adquirir uma Hasselblade quinhentos cê, o que acabei por conseguir, uma seis seis com carregador duplo e objectiva Carl Zeiss de oitenta milímetros com dois ponto oito de abertura, despertou-me igualmente a curiosidade, quando anunciaram a venda de um baú fechado a cadeado. Ninguém sabia o que continha, anunciaram divertidos, e só acrescentaram que tinha pertencido a um litógrafo da velha guarda. Quando desvendaram o nome do artista, não acreditei, até perguntei para repetirem, tão incrédulo estava. E depois, desembucha!, quase que gritou. Agora estava excitadíssima para saber o desfecho. E depois?, repetiu. E depois? Olha, disse-lhe com um sorriso tranquilizador, Depois, felizmente que ninguém que ali estava conhecia o nome do meu avô, e acabei por licitar o baú por um preço decente. Está aí! Ainda não o abri, estou mortinho por isso, mas quero partilhar esse momento contigo. Ela levantou-se e beijou-o no meio do desfoque molhado que lhe inundou o espírito.
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Olhou para o velho baú de madeira forrada a cartão pintado, conservando ainda os cantos em latão quase preto e os dois fechos com cadeados. Tens a chave?, perguntou por perguntar, embora já soubesse a resposta. A chave?, Claro que tenho a chave, e mostrou-lhe uma chave inglesa pronta a partir os fechos do baú. Foi com um ruído seco que décadas de esquecimento se evaporaram, prontas a revelar um passado já a começar a ficar bem distante.
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O interior do baú, para além do cheiro característico das coisas velhas e antigas, estava cheio de antigos envelopes de papel fotográfico contendo as mais variadas coisas, desde fotos de família a fotos de estúdio, desde desenhos a lápis de cores, uma das especialidades do avô dele, a aguarelas de paisagens e ilustrações variadas. Bem lá no fundo, ainda tinha alguns utensílios de fotografia já muito em desuso, como dois tanques de revelação em baquelite, filtros e condensadores para um qualquer ampliador, lentes antigas em latão, parafusos roscados vários, latas cinzentas intactas de revelador em pó Promicrol e uma lata redonda de película Agfa a preto e branco, formato trinta e cinco milímetros e quatrocentos Asa, ainda por abrir.
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Sorriu quando o ouviu dizer, que valia a pena experimentar aquele rolo e aqueles reveladores. Ela sabia que ele queria experimentá-los nela, e perguntou se não ia ficar tudo manchado devido à idade que tinham. Respondeu-lhe que era isso mesmo que pretendia, fotografá-la hoje com o material do passado. E na excitação da antecipação, correu para a câmara escura com a caixa de metal. Ainda o ouviu dizer, Lembras-te daquela caixa cheia de cassetes de rolos Agfa vazios, que andei a guardar todos estes anos? Até parece que estava a adivinhar, São os melhores para recarregar com filme virgem.
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Quando ele voltou, com a velha Nikon Éfedois e o mais que antigo flash SunPak montado no tripé com sombrinha, já ela estava desnuda no sofá vermelho de tantas recordações. Como é que sabias? Começou por perguntar, mas desistiu assim que a sentiu no limbo da sua excitação crescente. Como sempre fazia quando a fotografava, pôs o Cd do Coltrane a tocar baladas, e dançaram até à exaustão, coreografias exóticas na cumplicidade dos olhares.
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Por fim, não resistindo ao chamamento da novidade, correu de novo para a câmara escura, a fim de preparar o Promicrol para revelar os rolos. Ela, cansada e feliz, enroscou-se no velho sofá vermelho e adormeceu, na certeza do despertar no sorriso dele. Sabia que ele não ia dormir, já o conhecia o suficiente para saber que só iria ter com ela, quando tivesse revelado os negativos e terminado as provas de contacto.
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Acordou naquele estado em que não se tem consciência do tempo, do espaço e até de nós próprios. Sentia-se mais uma impressão de ser, uma promessa de futuro, do que estar no instante presente. E assim acordou, com o sorriso dele, perplexo e interrogativo ao mesmo tempo, como que a querer dizer-lhe, Queres ver isto? È no mínimo assustador. As fotos não estão muito manchadas, mas a tua imagem está um pouco diferente. Parece que a camada sensível não captou tudo, ouviu-o dizer numa voz mais rouca do que o costume.
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Tirou a cabeça debaixo do cobertor e viu-lhe o olhar surpreso no rosto jovem de cabelos compridos. Com um gesto rápido, ele levantou o cobertor que a cobria e fê-lo voar, até ela ficar novamente nua perante ele. Estás igual às fotos, mas as fotos não estão iguais a ti, gaguejou confuso. Os teus seios estão mais pequenos, quase não tens cabelos púbicos e estás com um corpo de adolescente. O que é que te aconteceu? Isso pergunto eu, respondeu-lhe ela de rajada. Já olhaste para ti? Com os cabelos compridos à anos sessenta e barba quase imberbe? Olha para ti, disse não muito convicta, enquanto acariciava o corpo e o sentia mais jovem, rijo e cheio de promessas. Passou a mão pelo rosto e sentiu-o igualmente mais liso. Levantou-se de rompante e procurou o espelho da sala. Não estava lá, e a sala estava ligeiramente diferente. Só o velho sofá vermelho estava igual, bem, igual não estava, estava mais novo. Era isso, concluiu bem depressa, Tudo estava mais novo. Olhou para ele e suspirou, ou melhor, quase que implorou. O que é que nos aconteceu? Ele, acariciando a novidade dos cabelos compridos, começou por dizer, Não sei, não sei. Fui para a câmara escura fazer o revelador e de seguida pus-me a revelar os rolos. Quando acabei de os lavar e fui ver o que tinha saído, foi com espanto que constatei, mesmo no negativo, que o corpo que tinha fotografado era de uma adolescente. Até pareciam aqueles trabalhos do David Hamilton com fotos eróticas de adolescentes nuas. Confesso que fiquei baralhado e igualmente bastante excitado. Corri para te dizer isto mesmo, até que te vi. Estás linda, desejável, mas és uma criança. Que é que nos aconteceu?
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Vai buscar a caixa metálica do rolo, parece-me que vi qualquer coisa escrita nele, disse-lhe com nervosismo. Deve ter qualquer coisa a ver com tudo isto, acrescentou um pouco insegura. Era mais um palpite do que qualquer réstia de certeza. Enquanto ele foi buscar a caixa, olhou em redor e pareceu-lhe que estava em casa da mãe. Até a micro aparelhagem de Cd tinha desaparecido e em seu lugar brilhava agora uma daquelas telefonias enormes, com um mostrador cheio de números, botões nos lados e várias teclas ao meio. Quando se aproximou para a pôr a trabalhar, ele chegou com a caixa metálica. Na parte de cima dizia simplesmente, AgfaPan Quatrocentos, dez metros. Na parte de baixo, uma tira creme impressa a letras vermelhas dizia, Prazo de Validade - Abril de Mil Novecentos e Setenta e Quatro. Olharam um para o outro, na negativa incrédula.
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Lá fora, um eléctrico chiou na curva apertada do Quartel do Carmo. Pela janela da varanda ela viu de relance o chafariz iluminado, projectando sombras variadas no empedrado. O silêncio voltou ao Largo novamente deserto. Olhou de novo para ele e completou o gesto suspenso, ligando a telefonia. Eram quase onze da noite, Paulo de Carvalho cantava, E Depois do Adeus.
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32 comentários:

PHOTO disse...

Desda vez com Agfa 400 :) e sempre com excelentes palavras a acompanhar. Gosto de te ler nas palavras e nas imagens que também estas são sempre boas.

AC disse...

diz-me, miss swing
também sopra o sirocco na rua,
nesse sonho de juventude.

abraço, neste Adágio,
Largo.

pzs disse...

Eu acabo a chorar...
A música ajuda, os quatrocentos asas impôem o espirito do momento. estabelecem o hambiente...
E Morro de ciúmes e saudades de viver momentos assim...

E choro...

Unknown disse...

"Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim"

E há baús assim...

Beijinho*

GAGGINGyou disse...

Palavras impressas em peliculas de prata!


Um beijo

Heduardo Kiesse disse...

Merecia um livro amiga! Beijão, teu paradoxos

MIG-L disse...

Único...
http://prazeroculto.blogspot.com

Jaime disse...

Gostei da bela evocação. Se a chegada do puto crescido a casa for mesmo assim, é porque há pessoas felizes. Engraçado como Agfa 400, "E Depois do Adeus" e as ninfetas de Hamilton podem definir uma geração. Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és?
Beijinhos.

Abssinto disse...

Nostálgico, sonhador, e... tudo aquilo que só tu sabes imprimir nos teus textos, Mercedes.

bj*

JOTA ENE ✔ disse...

Oh mulheriii, tiro-te o chapéu, k textos bonitos "made in Maria" presumo eu ao qual nem faltou falares da Hasselblad (meu sonho) lentes Karl Zeiss 2.8, isto é muita ciência junta, ahahah

Bjsss ... Bom f-d-s para vós e abraço ao B

VIVA A CANON!!!

Em nota de rodapé dir-te-ei k lá no meu cantinho irei responder (se souber) à grande guerra mundial NIKON / CANON :-))))

D. Sebastião disse...

"Quiz saber quem sou
O que faço aqui..."

que viagem!!

beijinho

Alberto Oliveira disse...

... o "Regresso ao Passado" não é apenas a ilusão do cinema. A fotografia cumpre muito bem a função da realidade passada. E tu fizeste muito bem a junção das duas.
O último parágrafo é daqueles que eu gosto de ler... com gosto. Parabéns!

beijos & sorrisos.

Anonimo do Algarve disse...

Tão boa é a escrita como a insinuaçao da foto, parabens.

Bjs

Laura Ferreira disse...

que bom que é voltarmos aos baús...

Helena disse...

Lindo!
Adoro baús e cheiros do antigo e filmes a revelar.
Que coisa fascinante, gostei tanto de ler.
E que coisa bela, tu e teu B.
Beijos leiloados

Devaneante disse...

Que saudades textos!... e sim, também tenho saudades desses outros tempos!... quem me dera ter também uma AgfaPan quatrocentos com prazo de validade de Abril de mil novecentos e setenta e quatro!...

PS: Estou de volta, com muita leitura e muita escrita para por em dia... tarefa para os próximos dias...

Devaneante disse...

** saudades DOS TEUS textos **

PDuarte disse...

O maior sonho do homem. Voar no tempo.
Pousar no 24 de Abril foi a cereja no topo do bolo.
Nota 20.

lalisca.cs-life disse...

Um viagem pelo tempo, na intemporalidade duma fotografia...
amei o texto, a musica o ambiente!!
beijinho

~pi disse...

belo



re wind



~

Alguém Comum disse...

Muito bom !!!!!!!!!!!!!!!!!!


A.C.

Condessa disse...

De tirar o fôlego...
Viajei nas tuas letras...

Beijos ardentes

Malena disse...

No me olvido de tí, Mª Mercedes. Tengo que volver a tu blog porque quiero leer detenidamente tu escrito.

Um beijinho.

Lyra disse...

Passo por aqui para te ler e reler, o que sabe sempre muito bem!

Aproveito para te desejar uma execelente semana.

Beijinhos e at� breve.

;O)

Irene Ermida disse...

Um espaço que prima pela sobriedade e se distingue da vulgaridade! parabéns!

As memórias mantêm-nos vivos e acrescentam momentos ao presente.

João Videira Santos disse...

O mundo de novidades e velharias que se pode encontrar nesse velho prestamista da Rua do Loreto... Na montra do Mayer (assim se chama a velha casa de penhores) deixei olhares sortidos de querer comprar e não poder...Adorei o seu texto.

luafeiticeira disse...

Que história espectacular, li-a dum fôlego, parece que fizeste um argumento para um episódio duma série televisiva de histórias ocultas, qualquer coisa assim. Adorei.
Beijos da Carochinha

Peach disse...

Adorei esta tua história :)

O sofé vermelho e o vinho em copos de cristal...

Adoro objectos antigos, baus cheios de magia, leilões, velharias, antiguidades.... agarraste-me logo aí..

o ser fotografada, e o fotografar... lindo...

por fim a magia... o inesperado... o regressar ao passado, devido a um simples bau. lindo maria.

beijo

Heduardo Kiesse disse...

Mais um beijo amiga! Passei...

Lyra disse...

Olá,

Chegou a atura de eu tirar umas férias :O)))

Entretanto deixei, no meu blog, um “presente” para todos os meus amigos. Espero que gostem!

Tudo de bom para ti.

Beijinhos e até breve.

;O)

RC disse...

E depois de nós?

carpe vitam! disse...

Fico assim, a pairar nas tuas letras, a viajar no tempo, a absorver ansiosamente as palavras, saboreando a excitação. Que belo tesouro, que descoberta histórica!
Gracias, Maria :-)

 
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