11.1.08

ERNESTO CIENFUEGOS

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A aproximação ao Aeroporto Internacional José Martí fez-se pelo lado do mar, baixando sobre o Malecón e a zona velha de Havana. Dava para distinguir a Avenida Marginal e o começo do casario em direcção ao bairro El Vedado. Via-se perfeitamente do ar a Calle 23, “La Rampa”, como era conhecida devido à sua inclinação, desde o Hotel Nacional até ao planalto onde se encontrava o Hotel Habana Libre, o meu destino.
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Tinha passado um ano, desde que o Galuber Rocha me fizera o convite para participar no filme que estava a realizar. Na altura só me ocorrera perguntar-lhe, Porquê? Respondeu-me que o seu amigo John Cale lhe tinha falado duma radiante morena que tinha passado pela Factory, vestindo um vestido encarnado às bolinhas, muito sevilhano por sinal. Passou a noite a falar nessa mulher. Até ensaiou uns acordes para uma canção sobre ela. Chamar-se-ia Femme Fatale e seria interpretada pela Nico e pelos Velvet. É claro que fiquei muito curioso, e comecei a fazer a minha pesquisa. Inevitavelmente tive que aturar o Andy e as suas superstars, mas lá me deram o contacto do Luciano. Depois foi fácil chegar até ti!
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Confesso que na hora o meu ego cresceu desmesuradamente e a minha auto estima brilhou como se fosse uma supernova. Ia desfalecendo quando me disse com quem ia contracenar. O Jardel Filho, A Glauce Rocha, O Paulo Gracindo, O Paulo Autran e tantos outros que admirava na altura. Era difícil de acreditar, e ainda por cima nem conhecia o John Cale.
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Depois do Festival de Cannes e de Locarno, onde o Terra em Transe foi muito bem recebido e obteve muitos prémios, era agora a vez do Festival de Habana. O convite tinha sido feito pelo Governo Revolucionário, não só pelo facto de ser um filme de um dos mais controversos realizadores brasileiros, mas também pelo filme ser uma crítica velada à Ditadura Militar do Brasil. Quase que me pendurei no Glauber para vir a Cuba, desejosa de conhecer a revolução e também ter a oportunidade de rever a minha amiga Clarisse Lay. Tinha voltado a Cuba para trabalhar no Novo Teatro, e segundo sabia, contracenava com Hilda Oates na Peça Maria Antónia, estreada por Roberto Blanco, com música do fabuloso Leo Brouwer. Não cabia em mim de expectativa e contentamento.
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O autocarro militar que nos foi buscar ao aeroporto, subiu a rampa circular do hotel e parou debaixo da pala junto à entrada. Foi mesmo a tempo de evitar a chuvada torrencial que começou a cair. Estávamos no começo de Outubro, o calor era muito, a humidade ainda mais e a chuva andava à solta nestes tempos de revolução. Com a roupa colada ao corpo suado, ia morrendo de frio ao entrar no lobby gelado do Habana Libre. Vestia na altura um conjunto bastante leve, próprio para o clima de Havana, mas nada indicado para os ares condicionados dos hotéis.
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À nossa espera estava uma pequena comissão de boas vindas, rodeando uma das imensas colunas do átrio. Nos homens, os uniformes abundavam, nas poucas mulheres, duas ou três segundo me lembro, os vestidos compridos e plissados davam a tónica. A revolução ainda não tinha chegado às roupas. Foi-nos dito que como convidados, ficaríamos nos poucos quartos disponíveis do Hotel, já que a quase totalidade ainda estava afecta ao Governo Revolucionário. Seríamos acompanhados por uma guia e um funcionário, e podíamos visitar o que quiséssemos nos tempos livres, que diga-se de passagem não eram muitos. Os seminários sobre o Novo Cinema, as visitas à Universidade e às diversas casas de cultura, a juntar às representações oficiais, ocupavam os dias que íamos ficar em Havana.
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O duche já corria, o meu sorriso de finalmente ir tomar um banho, ficou suspenso no toque ritmado de alguém junto à porta do quarto. Fechei a contragosto a água já tépida e abri a porta. O meu sorriso voltou a florir no abraço de Clarisse. Até ensaiei uma lágrima ao canto do olho. Consegui reprimi-la a tempo de manter o rímel no lugar. E Clarisse sorria um sorriso bem cubano, no seu conjunto discreto de algodão. O tempo das toilletes sofisticadas já tinha passado, e agora só as provava nos adereços do teatro. Na vida real era a Clarisse Lay, trabalhadora do teatro, como era costume dizer na altura.
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Convidei-a para entrar, e entraram os dois para meu espanto. Ele, embora fosse alto e bem musculado, tinha-se mantido camuflado na sombra dela. Devia ser um guerrilheiro, pensei para comigo, arqueando os olhos na pergunta silenciosa que dirigi a Clarisse. Respondeu-me que ela ia ser a minha guia, piscando-me o olho como que a dizer que já não era a primeira vez, e ele era o membro do Governo para nos acompanhar. O funcionário, perguntei. Não, funcionário, não! Eu fiz questão que te acompanhasse um guerrilheiro a sério. Arqueei desta vez as sobrancelhas em sinal de, eu já sabia. E como se chama?, perguntei curiosa.
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Ernesto Cienfuegos, respondeu-me num português quase correcto. Combati na Sierra Madre ao lado do Che e do Herói de Yaguajay, os meus Comandantes, disse com orgulho. Depois do triunfo da revolução, quando o Comandante Cienfuegos morreu naquele misterioso acidente de avião, mudei o nome em homenagem a eles. Então conheces o Che?, perguntei com interesse redobrado. Com certeza, todos o conhecem. Mas tira daí a ideia, atalhou a Clarisse, Não se encontra em Cuba. Mas deixa estar, o Ernesto acaba por ser uma mistura dos dois, acredita, eu sei. Nem ousei ensaiar um olhar de desilusão. Eles olhavam divertidos para mim, e eu não sabia o que fazer. Só queria tomar o meu banho, tépido.
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Os dias seguintes foram como eu esperava, cansativos e suados. As batalhas intelectuais entre Glauber Rocha e Gutiérrez Alea sobre a estética do Cinema Novo acabaram por excitar os plenários e tiveram o seu ponto alto na formulação do que viria a ser a “Estética do Sonho”, em que defendia que se devia deixar de lado a violência em favor da defesa da irracionalidade como saída libertária. Essas ideias causavam algum incómodo nos funcionários, mas Glauber tinha Havana a seus pés. Era apaparicado como um intelectual estrangeiro que apoiava o regime, e perdoavam-lhe a ousadia. E eu estava também cada vez mais irracional. O clima, quente e húmido, punha-me num estado de excitação crescente. Os cheiros tropicais davam-me volta à cabeça. O rum, as limas adocicadas e os charutos sempre presentes alimentavam-me as fantasias cada vez mais recorrentes, a que a presença do meu guerrilheiro pessoal não era alheia. O Festival ainda vinha longe e já considerava Havana a minha casa.
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Nesse Domingo, o Ernesto conseguiu arranjar bilhetes e fomos ao Teatro Studio de Havana ver a Clarisse na peça Maria Antonia. Já noite cerrada, fiz questão de cearmos os três no Café «La Columnata Egipciana», o café preferido do Eça de Queirós em Havana e depois passeámos pela Calle San Rafael, deserta àquela hora, em contraste com a azáfama diurna, e dirigimo-nos para oeste, em direcção ao Parque Central. Sentámo-nos num banco de jardim em frente à Fábrica dos Charutos, um edifício bem folclórico, discorrendo sobre o que iríamos fazer no dia seguinte, o nosso dia sem compromissos de qualquer espécie. O Ernesto mora aqui ao pé, sabes? Disse-me a Clarisse num ar falsamente distraído. Olhei para ele num sorriso já familiar e fiquei à espera que dissesse qualquer coisa. Notei que estava um pouco mais calado do que era habitual nele, mas continuei a olhar para aqueles olhos verdes que me faziam sonhar com ondas do mar. Tenho umas garrafas de Caney por abrir e gelo, se quiserem, acabou por dizer. E tens-nos a nós, se quiseres, comentou a Clarisse na gargalhada cúmplice de mim.
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O apartamento situava-se no segundo andar dum edifício antigo a precisar de obras urgentes. No interior, a ampla sala impressionou-me pela altura do tecto, ainda com vestígios das decorações e frescos antigos. O resto, uma cozinha e um quarto igualmente amplo. Para os padrões revolucionários era quase um luxo, assim como o frigorifico a gás. Abri-o e não estranhei o que vi. Garrafas de cocacola e de rum enchiam-no por completo. O congelador cheio de prateleiras de gelo. Se tivesse dúvidas que o meu guerrilheiro vivia sozinho, deixaria de as ter naquele momento. Homens são sempre homens, mesmo os guerrilheiros.
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Então, onde estão as famosas limas? Perguntei no desequilíbrio de segurar três copos cheios de rum e gelo. Brindámos à revolução e continuámos noite fora, a brindar a todos aqueles rostos a preto e branco, que figuravam nas inúmeras fotos emolduradas que decoravam as paredes azul turquesa da sala. O calor e a humidade sempre presente entravam pela janela da varanda semi aberta. Estávamos meio nus, suados e completamente bêbados. Quando já tínhamos brindado a todos os rostos da sala, decidimos passar para os rostos das fotos nas paredes do quarto. Caímos os três pesadamente na imensa cama e não me lembro de ter feito mais algum brinde. Lembro-me vagamente de me ter enroscado junto ao peito dele e lhe ter sussurrado um Ernestito Querido, antes de deslizar para um sonho povoado de selvas e guerrilheiros barbudos fumando charutos enormes.
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De manhã, com o sol a entrar desmesuradamente pela janela, acordei sobressaltada do sonho que estava a viver. Assistia impotente ao espancamento de um homem no que parecia ser uma pequena escola perdida na selva. Não lhe conseguia ver o rosto porque estava de costas com o cabelo comprido a tapar-lhe as faces. As mãos estavam amarradas atrás das costas e um fio de sangue manchava-lhe a camisa suja. Ernesto acordou também, e abraçou-me com força. Correspondi ao abraço desejado e ofereci-me com querer. Quando ele entrou em mim, foi como se toda uma realidade desconhecida passasse a fazer parte integrante de mim. O cheiro húmido e fétido da selva soalheira, inundou-me na cheia das recordações colectivas. Vi-lhe os olhos fechados com força, como se estivesse a reprimir um pensamento desagradável. Puxei-o mais para mim, senti-o ainda mais dentro de mim e abandonei-me numa nuvem de cor verde. No fundo da nuvem, lá longe, uma imagem começou a formar-se. Estava de novo na sala de aula do sonho, e alguém fardado ajudava o homem sentado com as mãos amarradas atrás das costas a levantar-se. O soldado aponta-lhe uma pistola, mas as suas mãos tremem e hesita. O homem grita-lhe, Dispara, cabrón, dispara!
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O grito que ouço é o de Cienfuegos no momento em que ejacula. O grito mistura-se com os sons dos disparos que ecoam na minha cabeça. Alguém acaba de morrer e sinto o meu guerrilheiro a desfalecer na minha tristeza. Olho para o relógio na mesa-de-cabeceira, são 13 horas e 10 minutos do dia 9 de Outubro de Mil Novecentos e Sessenta e Sete. Ernesto Cienfuegos abraça-me com violência e articula no choro silencioso, Mi Comandante está muerto. Mataram el Che.
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. Clarisse Lay continuou e continua em Havana ligada ao Teatro Nuevo.
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Glauber Rocha acabou por ganhar o Prémio de Melhor Filme e da Crítica do Festival de Havana com o filme Terra em Transe, e ficou durante muitos anos ligado ao Cinema Nuevo de Cuba.
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Ernesto Cienfuegos continua fiel aos ideais dos seus Comandantes desaparecidos, levando uma vida simples longe das luzes da ribalta política.
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O Che? Gosto de pensar que continua vivo nos nossos sonhos libertários, ou como postulava a Estética do Sonho, "quando o sonho irrompe na realidade, ele se transforma numa máquina estranha àquela realidade, uma máquina tremendamente libertadora”.
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14 comentários:

Unknown disse...

Hola, querida amiga. Paso sólo un momento a decirte que estoy celebrando la entrada número 100 de mi blog con unos veros dedicados a todos mis lectores. Un beso y mi cariño,
V.

D. Sebastião disse...

Há coisas que não se comentam. Brinda-se em silêncio.

Peach disse...

ah bela Cuba!
Estive lá há alguns anos, e jamais esquecerei aquele povo humildemente magestoso! Os aromas, as cores.... Cuba é linda em tudo!

Havana é uma cidade mágica! simplesmente mágica... e Che Guevara, transpira por todos os lados- quanto ao post.... cortou-me a respiração

beijos

Abssinto disse...

Que revisitação mais poderosa, Mercedes. Tem o cantar de uma metralha. A liberdade...

Parabéns pelo post.
bj

Jo disse...

fantástico... tudo.
(saudades de La Habana)

beijo*

RC disse...

Ler o post ao sabor de uma Cuba Libre. ;)

Xi.

Jaime disse...

Fantástico, Mercedes! Parabéns. Partilho da homenagem sem reservas à generosidade dos míticos Che e Cienfuegos. É nítido que a ideia de do "dois em um" lhes deu ainda mais força e vigor revolucionário. :-)

Percebo pelas entrelinhas que não é uma homenagem ingénua, e por isso vale mais. (Será preciso morrer novo para seguir integralmente e se ser símbolo estético do Sonho?)

Belíssima, a interpretação de Soledad Bravo da canção "Hasta siempre", que conhecia na versão de Carlos Puebla (e que jazia algo esquecida na parte de trás da minha cabeça.)

Anónimo disse...

Mais uma blogadela fantástica, esta ceremony é surpresa atrás de surpresa...

Na altura não me dei conta de que estava a presenciar o nascimento de um mito. Tinha sido enviado pelo jornal para entrevistar Raul Castro, irmão de Fidel e o único dirigente cubano disponível para falar sobre o recente assassinato de Ernesto Guevara na Bolívia. Na entrevista não estava só, havia mais uns repórteres escandinavos e argentinos naquele ambiente pesado do ar carregado de revolta e tristeza, a cheirar a tabaco e a rum, a pólvora e suor. Mas o que me alertou os sentidos foi a musica que se ouvia no fundo. Foi a minha primeira pergunta a Raul Castro, porquê Femme Fatale? Soube então que esta era uma das músicas preferidas do comandante bem como do seu camarada e irmão de armas Camilo Cienfuegos. Os dois nutriam uma paixão secreta pela radiante e talentosa morena para a qual a música tinha sido escrita e composta. Tê-la-iam conhecido numa das suas estadias no México. Consta que Che teria usufruído de uma noite de dança com ela, o tango mais sensual e profundo que teria dançado em toda a sua vida. Ao saberem da presença da radiante morena em Cuba por ocasião do Festival de Habana, teriam enviado ao seu encontro um dos seus mais fiéis capitães, um alto e musculado guerrilheiro chamado Ernesto Cienfuegos que seria portador de uma mensagem de apreço e afecto. O mito de Che mal tinha começado, mas o génio e generosidade desta radiante morena já era para mim incontornável.

O Profeta disse...

Brilhante texto na saudosa atitude heróica de homens de outros tempos...


Doce beijo

Shelyak disse...

Uma mistura deliciosa de homenagem com um rico imaginário...voa-se por aqui, mais alto ainda quando ao som de tal versão do Hasta siempre, comandante...
:)

Viajante pelos Sentidos disse...

Ui... aqui cheira a Cuba Libre, melhor, saboreia-se uma fabulosa escrita... Que bela homenagem!

Hasta siempre!

Beijo viajante...

(adoro a música)

Anónimo disse...

Olá!!!
Vim conhecer seu blog!!!
Adorei!!!!!!!
Beijos
http://sex-appeal.zip.net
http://cara-nova.zip.net

O Profeta disse...

Na noite onde se esconde o canto dos pássaros
De onde nasce este manto de bruma
Para que norte viajam os teus anseios
O que procuras perdido na espuma?


Bom fim de semana


Mágico beijo

un dress disse...

diria que não pode estar mais vivo!

pode? :)

 
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