24.1.08

HOT

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É o Restaurante mais antigo de Lisboa, podem crer, continuava o Louis Le Clézio na sua busca interminável, pela lista infindável, de restaurantes que possuía no telemóvel. Tá bem, vê lá se ainda não está cheio, acrescentei. Tínhamos acabado de entrar na autoestrada quando ele confirmou mesa para três. Lembrei-me na altura de ligar ao Rafa. Talvez ele e a Luciana se pudessem juntar a nós.
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Liga outra vez para A Taverna e marca para cinco, pelo sim pelo não. Já de seguida madame, ouvi o Louis Le Clézio na resposta afirmativa ao meu pedido. Era Sábado, e íamos os três para a noite de Lisboa. Ainda ousaste dizer, O que é que se come por lá, mas na altura ninguém te ligou nenhuma. A conversa já andava no, onde ir depois do jantar.
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O Restaurante é mesmo por debaixo dum dos pilares do Aqueduto das Águas Livres, na Rua das Amoreiras, à esquerda de quem sobe. Como sempre acontece, demos duas voltas ao quarteirão para arranjar um local para estacionar. Arranjámos um mesmo em frente ao Jardim das Amoreiras.
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A Taverna é um local bem simpático e acolhedor. Tão acolhedor que devorámos duas entradas seguidas enquanto esperávamos pelos nossos amigos. O salpicão tinha acabado de fazer a sua despedida, quando o Rafa chegou sozinho. Apresentações feitas, o vinho que evaporava da garrafa sugeriu, implorou nas palavras sempre eloquentes do Louis Le Clézio, a encomenda rápida dos pratos. Um pato escondido no arroz, para namorar com os teus choquinhos à algarvia, fazia frente às fevras à sertã. O Quinta de Cabriz era um compromisso para o princípio de noite em tempos de crise. Mesmo assim, ficámos na dúvida e pedimos segunda garrafa. Só para ter a certeza.
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E ali estava eu, radiante no meu conjunto de fazenda e camisa branca, aparentando um ar completamente colegial, não fossem as meias pretas Admas a repor o equilíbrio. Até ousei terminar a refeição com um doce de Sericá à moda do século XVI. Os cafés foram pedidos na sempre confusão dos estilos, um cheio, um normal, um café sem ser cheio... Alguém, na piada de ocasião, sugeriu um café numa chávena vazia. E para espanto de todos, quando os cafés foram servidos, lá apareceu a chávena vazia. Servir café é coisa séria, pois então!
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Já na rua, a antiga Fábrica de Seda, transvertida de Museu de Pintura, lançava agora fios labirínticos, nos traços de Vieira da Silva, que nos puxavam para lugares sempre presentes nas nossas memórias, mas em tempos diferentes. Estávamos dentro de um quadro dela e decidimos mergulhar na tela colorida. Subimos os degraus de pedra que levavam ao jardim e dirigimo-nos ao Procópio das tuas recordações. Louis Le Clésio garantia que tinha agora o melhor Alexander’s, desde a defunta Casa do Largo. Para mim era novidade, os teus tempos de recordação vestiam-me de bibe e soquetes.
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O labirinto chamava-nos para mais uma volta concêntrica e saímos em direcção ao Hot Club. O Rafa apanhou um desvio e sumiu-se, talvez envergonhado por ter confundido o mês da minha data de aniversário. O Louis nada envergonhado, presenteou-me com uma pérola de retórica Alexandr’ina, Eu sei que todos os anos fazes anos, só não me lembro é da data...
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Optámos por descer a Rua do Salitre e parar o carro no Parque Mayer. Subimos a rua em direcção à Praça da Alegria, passando pelo cada vez mais respeitável Maxime’s e entrámos na cave mais apertada de Lisboa. O Villas Boas com o corpanzil que tinha, bem podia ter arranjado uma cave um pouco maior. Mas assim é que é Hot.
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O quinteto de Pedro Moreira estava no segundo set quando entrámos. O som do sax enchia a sala por completo e senti-te a ficar mais próximo de mim. Nas paredes sobressaíam os posters dos primeiros festivais de Jazz de Cascais. Um Miles olhava fixamente para um Sam Rivers de chapéu enfiado na cabeça. Ali mais à frente um Dexter Gordon fumando o cigarro proibido, e depois todos os outros que me tinhas ensinado a gostar. Por ali passeavam também as sombras passadas do começo dos Sassettis e Barrettos, de Marias Vianas, de Marias Maxs, de Marias Joãos e Mários Laginhas, entre tantos outros. Ainda te ouvi dizer, Olha aquela ali, é a do Zé Eduardo, o que começou com a escola.
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Na penumbra fronteira ao bar, abraçaste-me por trás e senti o teu contentamento por me teres ali, no teu espaço, no teu som, no teu mundo tão natural e por vezes tão estranho para mim. E contigo viajei no solo do contrabaixo do Nelson Cascais. Riste-te, como sempre te ris, quando te disse que me fazia lembrar os Aristogatos da minha infância. Os teus olhos brilhavam com imagens passadas, do Carlos Paredes improvisando na guitarra portuguesa o tema Song for Che, acompanhado pelo Charlie Haden no contrabaixo.
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No intervalo fomos até pátio exterior e depois ao saguão tipo filme do Tim Burton, com a sua buganvília amputada na fúria camarária. Bebendo tranquilamente uma cocacola, o incontornável Rui Neves contava histórias dos tempos que merecem histórias. Por ali passeavam ainda os primeiros passos da aprendizagem do Pedrito de Portugal, garantia ele no sorriso de olhos quase fechados. É que estão a ver, a cave do Hot era a meias com uma tertúlia tauromáquica. O que acontece é que o pessoal da tertúlia foi envelhecendo, e já morreram quase todos. Mas aqui treinavam com aqueles carrinhos com cornos.
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O último set entrou na minha cabeça com uma sonoridade que nunca tinha ouvido. A tua presença colada a mim, a identificação contigo e com o que me rodeava, dava-me volta à cabeça. O trompete do João Moreira serpenteava com o sax no improviso final e fazia-me vibrar na antecipação de estar sozinha contigo. A colegial sentia-se doutorada.
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Foi com tristeza e alegria que descemos a rua em direcção ao carro, deixando o Louis Le Clézio no Maxime’s, quiçá para verificar se o Alexander’s dali era melhor do que o do Procópio. Tristeza por ter acabado o concerto, e alegria por te ter finalmente só para mim. É que naquela altura já estava bastante Hot.
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23 comentários:

Shelyak disse...

Incrível como, de um acontecimento dito "vulgar", se pode fazer um post tão cheio de ternura...
Uma foto digna de figurar no MoMA, uma música deliciosa e que tão bem aglutina uma ida ao Hot Club com um jantar que parece ter sido animado (café numa chávena vazia? hummm...a isso chamaria italiana extremista), um texto que nos faz ter querido partilhar a noite...
Assim sabe bem viver...:)))

Silêncio © disse...

Consegues me transportar mas tuas palavras para os locais que tão meticulosamente descreves.
Deliciei-me com as tuas palavras.
Beijo agradecido :)

Silêncio © disse...

Consegues me transportar mas tuas palavras para os locais que tão meticulosamente descreves.
Deliciei-me com as tuas palavras.
Beijo agradecido :)

D. Sebastião disse...

Belo programa. Com esta descrição consegui fazê-lo antes do meio-dia. Estranho não é?

beijo

Abssinto disse...

Como sempre, um texto apetecibilíssimo, dos que merecem a pena ler devagar, atento a cada pormenor. Vou começar a beber-te com um tinto douriense ou um cálice de ginja...

beijos, Mercedes

Peach disse...

que noite fantástica.
adorei a foto.... o contraste das meias colegiais acima dos joelhos com o restante conjunto fica i máximo!

beijo

venus disse...

vestida para matar.....


fue lo primero que se me viono a la mente al ver la imagen


besos

PDuarte disse...

Não sei quem és, nem quero saber.
Não sei para onde vais, nem quero saber,
Não sei o que queres, nem quero saber.
Sei que é uma delicia lêr-te. Ainda por cima gostas do Rão.
Um grande beijo.

Jaime disse...

Um texto com savoir vivre. Como a descrição do resto parece fidedigna, vou admitir que a Taverna, onde nunca fui, também é como descreves. Pão pão queijo queijo. É que fiquei com água na boca... :-)

Pekenina disse...

Programa 5*...Belo texto!
Beijinho*

un dress disse...

tens uma escrita...hot!

doce melada

e atenta ao pormenor.

guião

ascendente

de calor e desejo.


acompanhamento sonoro... imprescindível neste texto! :)




.beijO

luafeiticeira disse...

Até me sinto mal a acabar de postar os dalton III e vir aqui ler este texto magnifíco que nos faz querer ir conhecer o resteurante´. Parabéns.
beijos

I Mean It disse...

do mezzaluna e trattoria até à casa da comida, passando pelas brasitas no páteo...
é só escolher...
pensava eu!!

o melhor de tudo! encontrar uma mulher apaixonada que me faz vir...
à bloga confessar a vontade de ir à taverna.

beijo em si bemol,
i mean it

Anónimo disse...

O descrever de um momento unico.O momento de partilha unicamente e particular .O gosto divino de poder saborear.

Jo disse...

lisbon chic!

;)*

JCA disse...

Olá, pelo que tens escrito, demos-te um prémio, passa pelo nosso cantinho e vê

Beijos provocantes

RASTINOV disse...

Não só... mas pela alusão ao Senhor Carlos Paredes, a colegial merecia um "doutoramento honoris causa".
Beijo

luafeiticeira disse...

Olha, deste-me inspiração para o Dalton IV, espero que não te incomodes por citar o teu blog.
beijos

Anónimo disse...

a tua escrita delicia-me a alma ;)

beijos ternos e doces..feitos de chocolate

XupaNuPipi disse...

Muito anos 20, muito kitch...e essa fatiota....beijos ou abraços :-))

XupaNuPipi disse...

Muito anos 20, muito kitch...e essa fatiota....beijos ou abraços :-))

[A] disse...

esta noite que relatas não foi certamente uma "road to nowhere"
bj.

xxx

Zebra disse...

A Tua presença no "balcão" do Hot dá-lhe outro nível... e a maneira como escreves...é muito sugestiva.
Continuação de bons "concertos"
e muitas noites "HOT"!

 
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