29.1.08

A PORTA

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Normalmente não sonhava, embora soubesse que todas as pessoas sonhavam, e por acréscimo, ela também. No entanto, era como se não sonhasse nunca ou quase nunca. Adormecia e era como se desligasse o interruptor da luz. Acordava no momento suspenso no instante de acordar.
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O sonho não fazia parte do seu universo consciente. O que existia nesse mundo fascinante era algo que raramente experimentava, e quando tal acontecia, quer fosse um bom sonho ou um mau sonho, ficava extasiada com a vivência naquele mundo e lembrar-se-ia para sempre do sonho que tivera.
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Ouvia fascinada as histórias das amigas, contando os sonhos diários que tinham, as experiências loucas e sem sentido que experimentavam, os medos e os êxtases que sentiam, os pesadelos que viviam durante a noite. Quem me dera ter um pesadelo, e lembrar-me dele. Quem me dera ter um sonho e ter consciência de estar a sonhar, costumava pensar.
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Começou por tentar estar consciente o mais possível antes de adormecer, a retardar ao máximo o momento de passagem para a outra realidade ou consciência. Invariavelmente perdia-se no vazio, agarrada a um qualquer pensamento que se repetia sem parar, até que deixava de ter consciência do mesmo no preciso momento em que adormecia profundamente.
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Uma noite, enquanto tentava estar alerta para o momento da passagem impossível, viu-o, ou melhor, teve a percepção que alguma coisa ou alguém estava a tomar forma no vácuo que ocupava toda a consciência que ainda tinha de si. Teve a percepção no instante antes de adormecer, e foi de tal maneira forte que no outro dia, ao acordar abruptamente do sono pesado que normalmente tinha, ainda se lembrava que alguma coisa se tinha passado no momento de adormecer. Passou o dia todo obcecada com tal facto e não fosse o trabalho que tinha para fazer, teria tentado adormecer antes da hora normal e rotineira.
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Nesse dia foi para a cama mais cedo e repetiu o procedimento da noite anterior. No preciso momento em que ia adormecer, ainda teve tempo para numa fracção de segundo vislumbrar duas portas suspensas no vazio.
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O dia seguinte, as semanas e os meses que se lhes seguiram, foram iguais ao que sempre tinha experimentado. Nada de sonhos, nada. Tinha a recordação das duas portas, e essa recordação pertencia-lhe, não tinha contado a ninguém a visão das duas portas a flutuar no vazio da existência, da sua existência.
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E como sempre acontece, quando já tinha desistido de ter qualquer percepção, por ínfima que fosse, do mundo dos sonhos, aconteceu. Viu as duas portas, e viu uma luz dourada na fresta da ombreira da porta do lado esquerdo. Pensou que isso queria dizer algo, poderia ser um sinal, e resolveu entrar. Estendeu o braço em direcção à porta e viu a sua mão agarrar e rodar o puxador. A minha mão, pensou maravilhada, consigo ver a mão do meu corpo no sonho. Decidida, empurrou a porta e ficou momentaneamente cega com a luz dourada e quente que a envolveu.
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Estava tão maravilhada com a torrente de luz que a envolvia e aquecia que nem reparou na voz por trás dos vultos difusos que a rodeavam. A voz, numa vibração grave e de cor laranja dizia, Finalmente meu amor, finalmente!
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Sentiu uma pressão no abdómen, mas não entendeu o que era. Olhou com mais atenção para os vultos difusos e pareceram-lhe familiares. Eram impressões vagas de pessoas que conhecia. Uma ideia tomou forma no seu lado direito e começou a aquecer-lhe o braço. Quando focou a atenção naquela massa viscosa e quente, percebeu que os vultos eram as recordações das pessoas que tinha encontrado ao longo do dia. De todas? Interrogou-se, enquanto olhava mais atentamente para aquelas formas indistintas e leitosas. Na primeira fila julgou perceber caras conhecidas, na segunda ainda achou mais algumas, mas à medida que alongava o olhar a estranheza era total.
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Percebeu finalmente um brilho alaranjado ao longe e tentou decifrar a vibração que emanava dele, mas o sussurro cada vez mais forte de todos aqueles vultos não a deixava ouvir. Sentiu um arrepio a percorrer-lhe o corpo e começou a dirigir-se para a vibração laranja que pulsava cada vez com mais intensidade. À medida que se deslocava, os vultos afastavam-se como peixes num cardume. A sua atenção estava focada na vibração laranja, sabia que ali estava algo de importante, e uma ideia começou a formar-se junto ao seu lado direito e envolveu-lhe o braço numa luz esverdeada e sensual que lhe dizia, Finalmente meu amor, finalmente.
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Quando integrou a luz, todo o seu ser estremeceu de prazer e numa fracção de tempo, os vultos das recordações do dia desapareceram e viu-se frente a frente com a vibração laranja que pulsava cada vez mais depressa. O pulsar rapidamente transformou-se num vórtice e julgou vislumbrar uma forma no seu interior, como se fosse uma crisálida.
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O vórtice parou por fim e revelou um corpo nu enrolado sobre si próprio numa posição fetal. Estendeu o braço para tocar aquele corpo e no mesmo instante sentiu-se envolvida por um abraço forte e macio ao mesmo tempo. O seu corpo vibrou de novo com um espasmo de prazer e o seu peito brilhou em uníssono numa luz verde levemente esbranquiçada. Sentiu um afago nos cabelos e retribuiu o gesto deixando a mão deslizar até ao pescoço. Sentiu a respiração quente azulada no seu pescoço e uma voz rouca que lhe sussurrava ao ouvido, Finalmente meu amor, finalmente conseguiste chegar até mim.
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Os joelhos tremeram-lhe, um arrepio subiu até aos ombros e diluiu-se na luz azulada que emanava dum ponto no centro da sua garganta. Sentiu o calor do corpo nu que a abraçava, sentiu o calor do seu próprio corpo, também nu, constatou com surpresa. Procurou instintivamente o beijo e sentiu os lábios a queimar na paixão desconhecida e no entanto já desesperadamente querida. O beijo entrou bem no centro das costas, perto das omoplatas, e subiu até explodir entre os olhos numa torrente de luz púrpura que a envolveu e elevou no espaço virtual que ainda percepcionava.
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Vem, sente-me e ama-me, Quis dizer no momento em que todo o seu ser começou a vibrar em uníssono, no momento em que soube que o tempo se anulava e o amor primeiro cumpria a promessa de ser. Ainda visualizou as vozes, Meu amor, a mesclarem-se juntamente com as partículas que se uniam e entrelaçavam até formarem um novo ser, uno e indivisível, finalmente.
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Um novo ser de luz que ficou a pairar no vazio infinito que se estendia em todas as direcções. Além dele apenas existia uma porta. A outra tinha deixado de existir no preciso momento em que se unira com a promessa do amor primeiro. A porta que ainda existia tinha uma particularidade, não tinha puxador, só podia ser aberta do lado de fora.
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Muitos anos passaram até ao dia em que, o marido e os filhos, deram ordem para desligarem a máquina que a mantinha em animação suspensa, prolongando-lhe o coma em que se encontrava, desde aquele dia em que adormecera bem cedo e não voltara a acordar.
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Tinham-na mantido assim, na esperança de virem a descobrir a razão do sorriso, que mantinha desde esse dia. Quando se cansaram, desligaram a máquina. Finalmente.
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29 comentários:

Natureza disse...

muito potente! vou estar exaltada quando hoje tentar adormecer e o teu texto se andar a passear pelos meus pensamentos!

PDuarte disse...

Guardo sempre o teu blogue para último.
Depois de te ler perco a mania que sou engraçadinho.
Depois de ter ler fico pequeno.
Depois de te ler tudo é pequeno.
Houve alguns momentos em que não acreditei que estava ter o previlégio de ler algo tão bem escrito, aqui...por aqui.
Comentar mais é dizer a menos. Calo-me e obrigada.

Jaime disse...

Isto está fantástico e é muito fantástico. A tua escrita é bastante rica, imaginativa, mesmo simbólica, há aqui coisas que eu pelo menos agora não percebo e vou voltar a ler quando tiver mais tempo. Este "beijo da morte" tem que se lhe diga...
Beijinhos (normais).

Shelyak disse...

Tanto de belo como de triste...
Mas é assim que as coisas são...

Alguém Comum disse...

Compreendo as tuas palavras mais do que talvez pensasse compreender.
As memórias são o que são, e há memórias que não passam, por mais adultos que sejamos...

Quando tem de se tomar a Decisão...
vêm as fraquezas ao de cima e sentimo-nos apenas humanos, não cobardes, mas humanos, com as nossas indecisões...
Esperando sempre que alguém tome a decisão por nós...

O que acabou por acontecer...

luafeiticeira disse...

Muito triste e muito polémico.
beijos daltónicos

aqui-há-gato disse...

Sempre polémica, sempre forte, sempre com as letras nas palavras certas... Suspiro.


O Gato

Devaneante disse...

Absolutamente fantástico!... muito bem escrito (como sempre) e muito profundo, provavelmente mais profundo do que julgo entender...

A espera por mais um post teu já se tornou um ritual... sempre muito bem recompensado. Obrigado!

Viajante pelos Sentidos disse...

Arrepiante.
Uma escrita visual, sensorial... arrepiante.

Estou sem palavras... acho que vou ter medo de adormecer esta noite...

Um beijo viajante...

venus disse...

BUENO.. SABES QUE NO ENTIENDO EL IDIOMA.. SIN AMEBARG LA IMAGEN.. EVOCA EL DESPERTAR.. TEMPRANO.. AQUEL MOMENTO QUE NOS TOMAMOS ANTES DE COMENZAR...

BESOS

O Profeta disse...

Os pesares dividem as marés
A idade do ouro ainda tarda
Os anos passam como gotas varridas
Por um tempo que retrata o nada


Convido-te a saborear um absinto no meu espaço
pela Taça de Fino Ouro



Mágico beijo

RC disse...

E tu: sonhas?

ContorNUS disse...

Deixa o sonho fluir...

Beijo.te o sentir

GAGGINGyou disse...

não comento os teu textos há muito tempo...mas leio-os sempre! este quebrou-me.

JOTA ENE ✔ disse...

Blog excitante, só passei por aqui pq sei k gostas de fotografia.

Bjs e bom f-d-s ;-)

Anónimo disse...

Muito bom. Muito lúcido. Pena que nem todos tenham um cantinho, mesmo onírico, onde possam sorrir descansados.

Peach disse...

tu escreves de maneira fantástica!

quanto á musica, eu lembro do post... até comentei!

ora tens um convite para uma festa hihihihiih

D. Sebastião disse...

Sem comentários...

un dress disse...

reconheço.

o lugar

o estado.


quanto a sorrir: não há

razão.






.beijO.viaGem

Red Light Special disse...

Aiiii... q aperto no peito senti agora. Não esperava este desfecho... nada mesmo.
Projectei-me para o coma que vivemos o dia-a-dia, (in)conscientes do nosso erro... deveriamos desligar logo a "máquina" e nunca o fazemos. Às vezes precisava que alguém desligasse a minha...

mfc disse...

Desconcertantemente bonito!
Parabéns.

Klatuu o embuçado disse...

Fantasia mesmo, mas bem escrita.

carpe vitam! disse...

sonhar está ao alcance de qualquer mortal. e sonhamos de facto, mesmo quando não nos lembramos disso, o cérebro gosta de brincar com as memórias quando nos apanha a dormir. é uma forma alterada de consciência, uma tentativa de imortalizar memórias?

Who wants to live forever?http://www.youtube.com/watch?v=Zo52T7uKOJU

carpe vitam! disse...

"Who waits forever anyway?"

Abssinto disse...

A irrealidade palpável.

bj

Jo disse...

fantástica escrita!
"colei" ao ecran até ao fim!

beijo*

JOTA ENE ✔ disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JOTA ENE ✔ disse...

Em nota-de-roda-pé, dir-te-ei ...

... k tb foste linkada.

Bjos fotografados

pzs disse...

...

Também do meu, ainda hoje, desconheço a razão.
Sei, no entanto, ter no coração a sua origem e que não têm as máquinas poder para o desligar.

De que me serve se não és tu o outro...

 
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