24.2.08

CONVERSA NO CHIADO

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O poste de iluminação pública acentuava a solidão na esquina da noite. Na rua deserta e escura, o poste de iluminação pública fazia lembrar um louva-a-deus em êxtase, emanando uma auréola de luz difusa que iluminava meio passeio e meia rua. Um som de piano rastejava pelo passeio húmido e embateu docemente no poste de iluminação pública. Este vibrou com os acordes que lhe subiam pelos tubos e começou a sonhar no preciso momento em que a lâmpada de vapor de mercúrio tremeluziu com um pequeno relâmpago púrpura.
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No sonho que será intuído por todos os postes de iluminação pública, Beethoven aflora as teclas em Fur Elise, de seguida Debussy apresenta La Mer e os oboés dançam com os violinos por entre a espuma das ondas do mar, até que por fim, Keith Jarrett em sapatos de ténis e toalha ao pescoço se esquece de si próprio, e toca em improviso total nos temas de Radiance.
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O poste de iluminação pública sonha que quer escrever um texto sobre postes de iluminação pública e está num daqueles dias de escrita não. Ao som do piano que ainda vibra em si, decide abrir uma garrafa de tinto. Também tenho direito, pensa com alguma mágoa, Cada vez há menos pessoas a falar comigo, a contarem-me as desgraças e os amores perdidos nas ruelas bairristas. Suspira um, Modernices, e serve-se generosamente.
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O cálice de tinto perfuma e entontece o ar em redor das ideias frescas de modo a serem presas fáceis da escrita. Como os peixes apanhados no anzol, as ideias também se debatem e são difíceis de agarrar, mas com jeito, o corpo de sonho do poste de iluminação pública apanha uma, e num gesto largo e preciso lança-a para a realidade virtual e a ideia materializa-se em palavras no ecrã do portátil.
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Diz que o piano do Tom Waitts esteve a beber enquanto o seu laço ao pescoço adormeceu. A carpete da sala precisa de ir ao barbeiro e o telefone resmunga por se lhe terem acabado os cigarros. Enquanto isto se passa, o piano continua a beber vinho tinto do Douro e os pratos de comida estão a tremer de frio enquanto esperam para se aquecerem no micro ondas.
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O dono da casa que é chefe de um partido político, tem a inteligência de um poste de telefone e não repara que o piano continua a beber da garrafa de Valado Tinto Reserva, já meia cheia, ou meia vazia (dependendo do observador). A criada não se encontra nem com um detector de metais e como ela odeia quem a contrata, ninguém é servido e os pratos de comida aproveitam para fugir. A torradeira parece um lutador de Sumo a atirar as torradas pelo ar, e os morangos na taça lançam divertidos bolas de chantilly uns aos outros.
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Alguém ousa dizer que a culpa disto tudo é do piano que continua a beber, enquanto o cinzeiro foge da sala com um ataque de nervos à vista do primeiro cigarro que o poste de iluminação pública acende. Os jornais começam a cortejar as revistas de fim-de-semana com editoriais sobre a crise e o rádio desliga a televisão com um grito de raiva.
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Tudo isto por causa do piano ter estado a beber, e do poste de iluminação pública estar a sonhar. A tradição já não é o que era! Os pianos e os postes de iluminação pública também não!
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16 comentários:

Peach disse...

Tu és fantástica com as palavras!
e na foto abaixo, estás linda

beijo

Devaneante disse...

Tenho de dar os parabéns ao poste de iluminação pública por ter sonhado, e ao piano por se ter embriagado...

;-)

muito querida disse...

eu acho que o poste de ilumina�o bebeu muito..mas que sei eu?
gostei.

:)

Jo disse...

ainda bem que já não são o que eram... estes são bem mais interessantes ;)

beijo*

Jaime disse...

Fico com a sensação que o Vasco Santana gostaria deste iluminado post... :-)
e eu também gostei. Beijinhos.

Abssinto disse...

Que imaginativo! Há coisas que devem mudar, sim e eu não tenho nada contra postes sonhadores e pianos que bebem:)

beijos

PDuarte disse...

Arrepias-me...não sei!!!
És assim...
Palavra.

Pekenina disse...

Se os postes falassem de tudo o que vêem nas ruas..
Beijinhos*

(Desculpa a demora...)

Anónimo disse...

Entre bebedeiras e sonhos espaço houve para a realidade. No fundo um encontro e uma conversa daqueles que o Chiado é fértil em produzir.
A tradição aqui mantêm-se, a constante surpresa e o crescendo do imaginário persistem em confrontar-nos semanalmente.
Vou questionar o meu rádio sobre a razão pela qual ele não desliga mais frequentemente a televisão, com ou sem gritos de raiva.

un dress disse...

o que eu gosto desta música e de tom waits!! :)


/ a que mais gosto deste álbum...invitation to the blues...


arrasadores aqui, a música e o texto!




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Alguém Comum disse...

Mas que é um belo local, lá isso é...
Com piano bem bebido ou não!

Anónimo disse...

Oi, gostei muito dos textos, da fantasia e magia da escrita, da complexidade... é uma leitura que prende...

Bjs :)

carpe vitam! disse...

mas afinal, quem bebeu foi o piano ou foste tu? Ou tu és o piano? Bem, quando se começa a falar de/com postes de iluminação...

Anónimo disse...

Que bom quando o som e a luz rodopiam e mudam de papéis e subvertem o argumento... O insólito é que dá vida ao plateau.

Beijos.

Shelyak disse...

já aqui tinha vindo várias vezes deliciar-me com este mundo...
Hoje deixo-vos um olá neste dia tão cheio de sol em que as árvores começam já a revelar suas cores...
Beijinho saudosos...

Anónimo disse...

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Aguardo resposta
Atenciosamente
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