28.3.08

OS TIGRES DE BORGES

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Havia já alguns dias que não se sentia lá muito bem. Vistas bem as coisas, não eram dias, talvez semanas ou meses, ou mesmo anos, não sabia bem. Era uma daquelas coisas que vinha de mansinho, sem aviso nem reparo, e que aos poucos e poucos ia mudando o seu dia à dia, sem que disso se apercebesse. Mas que não se sentia lá muito bem era um facto! O porquê já era outra coisa, pensava, sem saber por onde começar.
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Estaria diferente? Com certeza que estava, mas isso não era motivo para se sentir mal, antes pelo contrário! Sempre se sentira bem com as mudanças, achava que elas traziam sempre uma lufada de ar fresco ao seu quotidiano. Sempre fora assim. Mesmo quando as mudanças eram radicais, ao fim de pouco tempo começava a ler a nova direcção da corrente do rio, deixava-se levar e começava a navegar nas novas águas com entusiasmo redobrado. Estava diferente, mas isso era um facto normal nela, sempre em mudança como as águas dum rio, gostava de pensar. Só que desta vez estava diferente, mas não se sentia lá muito bem. Desta vez o ditado Pós Moderno que gostava de citar assentava-lhe que nem uma luva, Jesus Cristo morreu, Karl Marx morreu, e eu própria não me sinto lá muito bem!
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Começou por fazer uma busca meticulosa por todos os aspectos da sua vida, numa tentativa de perceber o que é que estava a provocar aquele mal-estar generalizado. Tremeu um pouco ao pensar que estava a agir como se fosse um daqueles gurus new age que desprezava, a aplicar um chavão, um lugar comum, para resolver a náusea em que estava o seu caminhar desperto. Pensou também que não tinha alternativa, se não eram os gurus new age, eram os gurus old age, andavam todos aos papéis, a limpar a sala e a despejar os cinzeiros. Ás vezes acertavam, outras vezes não, e o mexilhão que se lixasse, relembrou no velho ditado que dizia, Quando a água bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão!
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Decidiu meter ombros à tarefa e descobrir o que a fazia sentir-se não lá muito bem no seu dia a dia, no seu semana a semana, ou até quem sabe, no seu ano a ano. Decidida estava, e decidida começou a vasculhar a espiral de acontecimentos que a envolvia numa teia quase infinita de causa acção efeito causa. Como seria óbvio, recusou qualquer abordagem esotérica, tipo karma, o príncipe da causa efeito. Se fosse por aí, tudo poderia fazer sentido, era só uma questão de querer para que sim! Qualquer argumento de filme faz sentido, basta nós o querermos, pensava. Por aí não iria, definitivamente. Alem disso, tinha vários amigos que tinham enlouquecido ao irem por aí. E ela não queria que lhe acontecesse o mesmo.
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Tu és a actriz principal do filme que é a tua vida, veio-lhe à memória. Mais um chavão era do aquário, mas que lhe fazia algum sentido. Pois é, der por onde der sou sempre eu a boa ou a má da fita, Tudo gira à minha volta porque a minha atenção está cá dentro. Eu sou? Bom, se penso que sou, serei qualquer coisa, pelo menos sou eu, embora me continue a não sentir lá muito bem. E os tigres do Borges? Onde é que eles entram na minha história? Apareceram porquê? Eu não os chamei, pensou. Se calhar é melhor perguntar ao Cesariny esta cena dos tigres, ele é capaz de saber. O único problema é que eu não conheço o Cesariny, quanto mais fazer-lhe uma pergunta sobre os tigres do Borges. Isto complica-se e desvia-se do objectivo principal, que é descobrir a causa do efeito da acção que leva a que não me sinta lá muito bem, pensou no suspiro longo.
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Afastou o Borges e o Cesariny, personagens contraditórios entre si, e centrou a sua atenção no autor mais importante naquela altura, ela própria. Onde é que não me sinto lá muito bem? Quando é que não me sinto lá muito bem? Perguntas incómodas e cuja resposta ela já sabia, Em qualquer lugar, sempre. Reflectiu na conclusão e chegou a outra, conclusão. Se estou mal em qualquer lugar, sempre! Então é porque me falta algo para me sentir bem, sempre. Porra, já sabia que não resolvia isto à primeira, pensou para consigo. Agora falta-me qualquer coisa para aturar todo este circo que me rodeia. Estão todos passados da cabeça e eu é que me sinto mal. Se calhar é mesmo uma boa ideia falar ao Cesariny, pensou. Começo por lhe falar dos tigres do Borges e depois quando ele não estiver à espera, faço a pergunta chave. Ainda não sei qual é, mas logo se verá.
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O Cesariny quando a ouviu falar dos tigres do Borges, elevou um pouco a voz e respondeu, Já dei para esse peditório! E desligou. Pareceu-lhe ainda ouvir atrás do click um murmúrio a dizer, Que falta de pachorra. Ficou com o telefone na mão tempos sem fim antes de desligar. Tinha-se apercebido naquele momento da solução para o seu problema, da solução para o facto de não se sentir lá muito bem. Sabia que tinha perdido qualquer coisa. Tinha perdido alguma coisa que a fazia normalmente sentir bem. Soube naquele instante o que era. Soube naquele instante que tinha perdido a paciência.
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21 comentários:

Jaime disse...

Genial, a ideia de telefonar ao Cesariny. Via-se logo que ia resultar. Olha, adorei, mas isso já não é novidade! A paciência volta, não é grave a maleita. O Cristo e o Marx e o resto da maltosa não voltam, mas ainda é menos grave.

PHOTO disse...

:)como sempre boas palavras...

Tens umas mãos bonitas.

Anónimo disse...

A paciência... o chão... a sanidade... :))

Marrie disse...

Pssssssiu

Tem "segredo" de tigresa!!!
rs
bjs

Anónimo disse...

MARAVILHOSA fêmea!!! Andei perdido no teu mundo, mas voltei a encontrar-te, voltei a dar com a maravilha deste espaço onde Mulher, Marido, filhotes, tudo é um prazer.

Bichinho disse...

Paciência...beijo fantasma.

ContorNUS disse...

Gostei de te ler... há muito que não sentia um prazer de ler sem dobrar a página ;)

Obrigada!

Jo disse...

xii... quando a paciência falta é que são elas...

;)
beijo*

Devaneante disse...

Normalmente só nos falta a paciência para as coisas de que não gostamos. Quando gostamos não há paciência que se esgote.

Mais um excelente texto!

Beijinhos.

R. disse...

Esta música que toca dá uma grande pica ;)

Leio-te há imenso tempo,Maria.se não me engano,antes o teu blog era pink :)

Grandes textos,sempre!

Um beijinho

Heduardo Kiesse disse...

"paixão canhão" !! Mercedes? Está bombástico! Haja paciência para a falta dela nas filas de espera que nos cruzam!
Bjos

Abssinto disse...

Gosto de Cezariny, não suporto o Borges e adoro Maria Mercedes;)

bj

luafeiticeira disse...

estou como o abssinto...
beijos da padeira de aljubarrota

~pi disse...

tanto que se perca...

tanto<<

Vanda disse...

Também já dei para esse peditório.


Para Londres voltava a dar.

Sempre.

Anonimo do Algarve disse...

Paciencia isso pode-se comprar?

Tem um docinho no meu blog prás meninas.

Bjs

PDuarte disse...

É realmente notável a espiral em turbilhão para onde mandas as letras. Eu tenho sempre que ler os teus textos duas a três vezes para que as peças que ficam soltas as meta dentro do ciclone. Mesmo assim, fico com a ideia que há franjas de que só tu as conheces.
Admiro-te.

Laura Ferreira disse...

gostei. como sempre. já tardam, as tuas palavras...

un dress disse...

sou a favor de...depenicar os gurus.

todos magníficos.

nenhum...

... inteiro. :)





beijO

Marrie disse...

Passa lá nos meus "segredos"...... tenho uma idéia a ser avaliada..... como sei q somos parecidas pelo modo de viver e enxergar o prazer a dois, gostaria da tua opinião!
bjs

[A] disse...

Olá Maria.
A falta de paciência é quase uma epidemia social que mina as relações humanas.
Neste momento, é mesmo a falta de tempo que me mantém afastada.


Quanto ao Borges, não vou dizer que não gosto, mas não posso fingir que o entendo...decidi que o leria e releria na minha velhice, com toda a paciência.

 
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