29.4.08

MAR DE NUVENS

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Todas as manhãs a rotina era a primeira a levantar-se e a tomar o pequeno-almoço. Já confortada decidia-se a iniciar o dia. Às vezes ainda pensava iniciá-lo de maneira diferente, mas depois decidia proceder da maneira igual ao dia anterior, ou não fosse ela a rotina.

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Assim, começou por acordar a mãe bem cedo, ainda antes dos outros. Depois foi acordar o pai com o barulho da água a correr para o duche, e por fim lembrou a mãe de chamar o filho, primeiro suavemente, depois mais energicamente, e por último destapando-o com a lengalenga do costume, O teu pai já está vestido e se queres boleia para o liceu, levanta-te já. Enquanto a rotina tomava o segundo pequeno-almoço na companhia do pai, este preparava-se para sair, ao mesmo tempo que voltava a cabeça para o corredor e dizia em voz alta, Vou sair daqui a cinco minutos, se queres boleia, despacha-te.

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Tinha acabado de se vestir, quando ouviu a porta da entrada bater com força. Alguém tinha que arranjar aquela fechadura, pensou, enquanto ouvia o som familiar do motor da carrinha Opel, a começar a trabalhar. Ia a sair quando reparou que estava descalço. Voltou atrás, ao mesmo tempo que o som familiar da carrinha, se afastava em direcção à calçada. Resignado, deu um beijo à mãe, apanhou o velho bornal de lona da tropa com os livros e cadernos, juntamente com o chapéu de abas largas que tinha a mania de usar, e saiu a correr em direcção ao Largo da Boa – Hora para apanhar um eléctrico. A linha de eléctrico e o caminho para o liceu eram os mesmos, por isso não perdia tempo em ir por ali.

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Teve sorte e ainda foi a tempo de saltar para a traseira dum, agarrando-se à grade do lado exterior. O eléctrico ia cheio e assim era uma maneira de o apanhar. Os tempos de andar na pendura já lá iam, mas por vezes justificava-se, como naquele dia. Nem tinha que se esconder, o eléctrico ia tão cheio que o revisor nem se conseguia mexer lá dentro, quanto mais aproximar-se da porta. Olhou para o relógio e chegou à conclusão que talvez chegasse dentro da tolerância dos cinco minutos, senão estava feito, era mais uma falta a juntar a algumas que já tinha.

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Ia a chegar ao Largo do Rio Seco, quando viu de relance um carro com riscas azuis. A bófia, deixou escapar no sobressalto, enquanto saltava instintivamente do eléctrico em andamento. Não reparou no VW carocha, que entretanto decidira ultrapassar o eléctrico, e sem saber bem o que lhe estava a acontecer, começou por ouvir um som abafado mesmo por baixo dele, a janela do eléctrico passou-lhe de repente no canto da visão, enquanto o azul do céu tendia para a casa em ruínas que lhe estava à esquerda, e a sua própria sombra aproximava-se rapidamente de si. Caiu com a rapidez com que se levantou. Todos olhavam para ele, estáticos, como se estivessem congelados e ele fosse o único animado de vida. A bófia, lembrou-se, e desatou a correr em direcção ao túnel do Rio Seco, no instante em que o condutor do carocha saía do carro, ainda sem perceber bem o que se tinha passado.

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Saiu do túnel quando viu o carro com riscas azuis a subir a calçada, e sentiu uma dor alaranjada na anca esquerda. Doía-lhe o corpo mas não tinha nada partido, aparentemente. E agora?, o melhor é entrar no Liceu pela porta do lado sul, é mais longe mas evito ir pela calçada, pensou enquanto se punha a caminho, coxeando ligeiramente. Começou a conferir se não tinha perdido nada, mas estava lá tudo. Quando tinha ido pelo ar agarrou bem o bornal e o chapéu. Também não tinha mais nada para me agarrar, pensou a sorrir enquanto apertava o passo pela Travessa do Giestal acima.

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Entrou sozinho pelo portão Sul, um enorme portão de ferro, desproporcionado em relação à quantidade de pessoas que por ele entravam diariamente. Igualmente fora de escala, era a escadaria que dava directamente para a entrada nobre do liceu. Era como, se a mesma, tivesse sido projectada para acolher um visitante ilustre vindo do rio, Talvez o D. Sebastião, ironizou.

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Não entrou pela secretaria, já tinha passado o tempo dos cinco minutos de tolerância e não queria encontrar nenhum dos porteiros Pides que por ali já deviam andar. Contornou pela direita o edifício, e dirigiu-se ao recreio fechado. Lembrou-se de quando era um miúdo e lá tinha entrado pela primeira vez, naquela altura não tinha portas de madeira e vidro. Era um espaço aberto e frio, só confortável no verão. Já tinham passado alguns anos, suspirou na memória recente. Entrou e pareceu-lhe totalmente vazio. Passeou o olhar distraidamente, e reparou no halo de luz ténue que emanava do vulto sentado ao canto do pátio.

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Curioso, dirigiu-se para lá. Parou quando ela levantou a cabeça e olhou para ele com um sorriso, continuando de seguida a escrevinhar no caderno aberto na mesa enorme. Quando ela sorrira, a luz tinha aumentado. Piscou os olhos como se estivesse encandeado e quisesse ver melhor. Provavelmente uma nuvem que descobriu o sol, pensou. No entanto continuava parado no mesmo sítio, sentindo-se um pouco ridículo. Só lá estavam os dois, ela escrevia e ele fazia figura de parvo. A anca começou a doer-lhe de novo, era uma dor latejante, agora a tender para o roxo. O roxo lembrou-lhe o manto do Senhor dos Passos, uma das figuras que saíam para a rua nas procissões da Igreja. O tempo tinha-se fundido com o espaço, e tudo se passava a um ritmo bem lento. Ela continuava a escrever sem lhe dar muita atenção e ele já estava no ponto em que ouvia distintamente todos os ruídos que o envolviam. Antes de começar a ter pena de si próprio avançou em direcção àquela luz que o intrigava e ouviu-se a dizer, Olá, que estás a fazer? respondendo mentalmente para si próprio, A escrever que está um estúpido a perguntar-me o que estou a fazer.

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Ela voltou a sorrir e disse-lhe que, Estou a acabar um poema sobre o mar cheio de nuvens, queres ouvir? Quando acabou, e lhe perguntou se tinha gostado, ele demorou um pouco a responder que sim. Demorou o tempo necessário para descer das nuvens e mergulhar no mar da razão, para fazer sinal com a cabeça, e dizer uns sons meio desconexos. Reparou também que a dor na anca tinha desaparecido. Sentindo-se bastante confortável arriscou um, Sabes, eu às vezes também faço uns poemas, só que nunca os mostrei a ninguém. Nem aos teus amigos? perguntou-lhe ela no sorriso cada vez mais luminoso. Os meus amigos não gostam de poesia, acham que é uma coisa feminina. São uns toscos, desabafou. E tens aí alguma para se ver? Não tenho, mas posso trazer-te amanhã. Tá bem! Passamos a encontrarmo-nos aqui neste lugar e trocamos poemas. Que achas? Ficou com o sim entalado na garganta, enquanto ela se despedia com um até amanhã.

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Nem tinha reparado que já tinha tocado para a segunda aula da manhã. Subiu as escadas a correr, e ainda entrou a tempo da aula de Organização Política com o Jaiminho.

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. (para ti, meu querido B, uma estória do tempo da outra senhora.)

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21 comentários:

Devaneante disse...

Estou sem palavras amiga! Um texto absolutamente fantástico...

pzs disse...

Maria Mercedes,

Não consigo evitar, hoje, deixar-lhe umas palavras de reconhecimento pelo imenso prazer que sempre tenho quando aqui me perco.
Consegue a Maria com as suas palavras transportar-me, tal máquina do tempo e arrastar-me consigo ao passado, rever o Prof. Jaime e a Dra. Filipa, que nunca esquecerei pois foram e são personagens fundamentais, fulcrais, no meu desenvolvimento intelectual e diria também espiritual.
Surpreendente a evidente intemporalidade dos seus contos que se adaptam qual luva á actualidade.

Espero que me perdoe o atrevimento e o tempo que perderá com estas minhas.

Muito obrigado pela viagem

Beijos

pzs disse...

Maria Mercedes,

Perdoe-me o atrevimento e não me considere brejeiro mas tenho que confessar a minha perdicção por meninas de olhos de B.
Sempre especiais....

Beijo

Alberto Oliveira disse...

... a rotina com as letras à solta por uma Lisboa de outros tempos que não me saem da retina.

Parabéns pelo "andamento molto vivace" do texto.

Jaime disse...

Esplendidamente visual, Mercedes, mas preste-se também a devida homenagem ao desfecho lírico.
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Essa dos poemas serem uma coisa feminina não lembra ao Camões. :-)

Heduardo Kiesse disse...

Mercedes és poderosa!! :-)

RC disse...

Céu de água.

Xi.

Anónimo disse...

Excelente, como sempre. Lisboa revisitada de forma sensorial e inusitada.

Beijinho

PDuarte disse...

Fantástica a forma como vestes as frases.
Fantastica a sorte que tive em conhecer este blogue.
Orgulho em de vez em quando te receber como visita.
Para mim a lidar com as letras és a maior.
Há quem se aproxime, mas tu és a maior.

Flávio Dantas disse...

maneiro seu blog!
vamos nos linkar? :}

Shelyak disse...

Beijinho aos meninos :)

Peach disse...

É preciso tão pouco para acabar com a rotina.
Ler-te é uma das maneiras de acabar com essa praga.

adorei!

tu és uma querida, sabias?

beijo

Flávio Dantas disse...

essa sua foto do topo é mto foda. tá adicionada

Ema disse...

este teu blog parece um livro. eu chamar livro a um blog é um elogio gigantesco. adoro lê-lo.

Lyra disse...

Olá,

Venho pedir desculpas por não vir cá há algum tempo, mas a verdade é que o meu filhote esteve doente e, como estive com ele em casa, o trabalho acumulou e agora o tempo é escasso.

Hoje apenas venho agradecer a tua amizade e simpatia e dizer que voltarei brevemente, com mais tempo, para pôr a merecida leitura do teu blog em dia, sim?

Beijinhos e até breve.

;O)

Anónimo disse...

Que blog interessantíssimo !


Eu tenho um tmb: Fragmentiras.blogspot.com


adorei a música, muito envolvente!



abraço, aparece lá no meu :)

Laura Ferreira disse...

musical e visual.
adorei.

Anónimo disse...

Textos com magia, sempre... ;) bjs

Jo disse...

speechless.

:)

beijo*

GAGGINGyou disse...

Hoje voltei a apaixonar-me pela escrita a a desiludir-me comigo!Foi na leitura de uns textos do Blog da Peach...que me penitenciei toda a manhã. Uma vez explicaste-me o quanto te desagradava o que colocava no meu blog. A vergonha impediu-me de voltar a comentar-te ....mas nunca deixei de te ler! Nem a ti nem a Moitessier. De formas diferentes...viajo convosco.
Um beijo

GAGGINGyou disse...

Obrigado pelas tuas palavras.

Sabes, caço as velas até a escota ranger mas nunca consigo chegar ao vento. Sei que ele tem algo para partilhar comigo...mas sinto sempre que é uma bolina impossivel.

 
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