13.3.08

VAZIO

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Sempre fora diferente dos colegas da faculdade. Enquanto eles se preocupavam com a forma e estilo dos edifícios a criar, ela preocupava-se em criar o vazio interior. Enquanto eles esboçavam o espaço construído, ela esboçava o vazio confinado pelos inúmeros planos que visualizava a pairar no espaço imaginado. Era uma abordagem espacial vista de dentro, orgânica, criando o espaço visível a partir do vazio inicial.
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Os professores olhavam-na como se fosse uma excentricidade do processo de criação artística aceite e venerado. Ela pouco se importava, e foi com um assistente curioso que teve o seu primeiro orgasmo pleno, daqueles que costumam dizer que tem fogo de artifício e multidões a agitar bandeirinhas às cores. No entanto ela não sentiu nada disso. Sentiu-se maravilhosamente suspensa num vazio intemporal, quase sem tempo.
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Acabado o curso, viajou na procura da transcendência escondida no vazio dos templos e acabou por ficar uns anos no Nepal. Tinha ficado muito pequenina no centro da cúpula do templo de Boudhanath Stupa, e resolveu ficar para perceber as linhas escondidas por detrás daquelas pedras aparentemente inertes. Acabou por praticar Yoga e embrenhar-se na meditação profunda e na prática de Pranayama. Aprendeu a ficar vazia de tudo, para que a criação acontecesse. Aprendeu a confiar na visualização da ideia criativa. Os seus cinco segundos de criatividade, como lhe costumava chamar, na brincadeira séria.
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Voltou com uma força quase destrutiva e acabou por chocar os colegas de profissão com as suas propostas. Enquanto eles alardeavam que estavam cheios de ideias para projectar, ela tinha que se sentir vazia de qualquer ideia perante o desafio do projecto. Sentia-se como se fosse a antimatéria. Não desistiu, mas cansou-se de lutar contra o starsystem. E na busca da tranquilidade e do vazio, mudou-se para Évora. Pelo menos lá o horizonte estava bem longe, limpo e vazio de casas. E tinha o Aeródromo, com os paraquedistas do Hangar número um.
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Naquele dia, tudo estava perfeito para o que queria. O tecto de nuvens estava relativamente baixo, aí pelos dez mil pés. A hora já tardia ajudava. O sol estava a caminhar para o ocaso e começava a projectar a luz poente polarizada. A grande sala vazia que era a zona de saltos, a drop zone como lhe chamava carinhosamente, estava iluminada para ela. Era o seu último salto do dia, o mais esperado. Apertou o arnês quase até doer, pediu a verificação do pára-quedas de reserva ao professor e amigo Amaral, e subiu para o Cessna que esperava por ela já com os motores a trabalhar.
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Quando chegou aos dez mil pés, mesmo a tocar o tecto de nuvens, abriu a porta do avião deixando entrar a turbulência e ruído do motor, e espreitou para baixo na vertical. O hangar era um rectângulo pequeno e longínquo, ligeiramente à sua esquerda. Fez sinal com o polegar ao piloto para corrigir a rota e ficou na borda a observar a sua posição em relação ao hangar. Quando achou que o desconto do vento estava bem, gritou um, Corta, para o piloto e saiu para a asa. Olhou-o na certeza, e assim que sentiu o leve pairar do avião saltou para o vazio.
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A sensação era quase a mesma que tivera no seu primeiro orgasmo pleno. Apenas o vento na cara a fazia estar desperta. Viu uma pequena nuvem mais baixa e mudou a posição do corpo de maneira a passar bem no meio. A mancha branca que era o hangar ia ficando ligeiramente maior, o único sinal que estava a cair e a aproximar-se dele. E foi nesse instante que algo lhe chamou a atenção no limiar da visão do lado direito.
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Percebeu o que parecia ser um disco branco a pairar um pouco mais abaixo. Esticou um pouco as pernas e rodou ligeiramente o tronco. O seu corpo acelerou na rotação e aproximou-se com velocidade da mancha branca. Não a evitou. E desapareceu num estalido de alguns milhões de electrões volt. No hangar ninguém ouviu nada. No rádio ouviram-se umas interferências. No campo, um cão ladrou. E o silêncio quase que voltou, não fosse o som do Cessna a aterrar na pista asfaltada.
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Procuraram-na a noite toda, com lanternas de mão, Jeeps com os faróis acesos nos máximos a percorrerem os terrenos envolventes ao hangar. Ao fim de uma semana desistiram. Tinham batido o terreno até Montemor e não encontraram nada. Ficou o carro, estacionado frente ao bar. Ainda lá está, à espera, e vazio.
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30 comentários:

Jo disse...

será que preencheu, finalmnte, o vazio?


fantástico, como sempre...
beijos**

carpe vitam! disse...

a sensação orgásmica de saltar para o vazio, a vertigem que dá...
ela apareceu depois do outro lado do mundo, uma ilha da Nova Zelândia plena de vazio, nos antípodas de Évora, não foi?

Anónimo disse...

Fazes-me viajar com os teus contos.

beijoca
bom fim de semana

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Jaime disse...

Excelente, Mercedes! The truth is out there... Lê-se de um fôlego. Tens muita imaginação. Beijinhos.

Shelyak disse...

E por aqui vou voando igualmente...
:)

Von disse...

Depois de beber café, olhou para mim e em jeito de despedida - "Olha, diz-lhe que o Bradbury lhe manda saudades" - e atravessando a rua, nem se virou para um olhar cúmplice. Ok, Ray, dei-lhe o recado.

Von

PHOTO disse...

Que bem que escreves.
Só falta uma galeria com todas as tuas fotos gosto delas.

Devaneante disse...

Vou rumo a ao vazio!...

Excelente, como sempre!...

Um beijo

O Profeta disse...

Verdade...ficção?


O Sol abandonou o céu
A Lua ironiza no celeste
Soltas perversas vontades
Cruzam a tua vida agreste


Convido-te a partilhar a minha visão da forma em
como a vida às vezes é perversa para algumas mulheres…

Bom fim de semana

Doce beijo

eudesaltosaltos disse...

bom ler-te novamente... um optimo texto, repleto de vazios que fui preenchendo paragrafo apos paragrafo.. bj e b-fds

Heduardo Kiesse disse...

H� um vazio todo ele cheio da beleza e de criatividade a transbordar no texto!

beij�o cheio de carinho!

PHOTO disse...

Carissíma "colega" bloguista e de "arquitetices" :D cálculo deixei de estar em pose :)

Marrie disse...

Belo conto!
Excêntrico, eu diria.
bjs

Viajante pelos Sentidos disse...

Uma viagem pelo estranho vazio desconhecido... Fantástica!

Um beijo viajante!

Pekenina disse...

Ler-te é sempre uma lufada de ar fresco. Que texto ;)
Beijinho nada pequeno :)*

Laura Ferreira disse...

lindo...

Sofia disse...

Novas actualizaçoes no meu blog, depois passa por la ;)


Beijos*

PDuarte disse...

Tu és...
o melhor ensaio que faço, aqui sentado.
O Excitações é tudo menos um vazio.
Bj.

Milupa disse...

Ainda nãi vi blog em que se escreva tão bem como o teu! até o meu está muito longe disso...
Parabéns pela qualidade.

As vezes o vazio é bom, setir o vazio é bom...

beijos sentidos.

Abssinto disse...

Que lhe tenha sido confortável o vazio em que entrou. Gostei bastante.

bj

[A] disse...

vazio,
mas não oco.

xxx

Amante da Vida disse...

Emocionante e estimulante como sempre.

Beijos

Anónimo disse...

Diante de mim
o seu corpo
belo
firme
quase nu
com cheiro
de mar
e de amor.
Diante dele
o meu querer
o meu desejo
intenso
inteiro
integral
indescritível
de tocar
cheirar
sentir
aquele corpo
aquele homem
aquele amigo
desejo.

danizitha disse...

mais um texto lindo :p
tens um prémio em meu blog

beijinhos

... disse...

Simplesmente fantástico ;)


Beijo grande!!

JOTA ENE ✔ disse...

PARA TI E PARA OS TEUS,

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PÁSCOA FELIZ!!

Peach disse...

o vazio entristece-me.

boa pascoa nina linda, com muitos chocolates!!!!

Zebra disse...

A complexidade de SER em toda a sua extensão...
Será esta a base da Teoria da M.M.?
Um beijinho

Alguém Comum disse...

A construção exterior serve para preencher o vazio interior.
Se este não for preenchido, para que é que serve a construção exterior?

 
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