10.7.08

ROUND MIDNIGHT – POR VOLTA DA MEIA NOITE

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O chapéu de coco fora pousado delicadamente no tapete felpudo. Era preto, na ausência do vermelho em terras de Espanha, contrastando com o creme, a tender para o laranja fim de tarde, do tapete. O chapéu dava-lhe aquele ar de vaudeville travesso que tanto gostava e praticava. Depois, pegou nas meias pretas, enrolou-as cuidadosamente, para de seguida as desdobrar até ao princípio das coxas. Estavam bem justas e contrastavam com a pele rosada do seu corpo nu. Olhou-se de novo ao espelho e franziu ligeiramente a testa na interrogação. Falta qualquer coisa, pensou. Olhou à sua volta e a pequena ruga transformou-se em sorriso. Pegou no colar de pérolas e vestiu-se com ele. Olhou decididamente para a imagem reflectida no espelho, e soube-se bela.
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A objectiva captava um brilho, um glow, que ela não sabia que tinha. Pelo chão, ao lado da carpete felpuda, brilhava uma garrafa de Quinta do Infantado, grandes copos vermelhos, objectivas, lentes, filtros e um ar de doce luxúria. Miles Davis passeava pela sala em sons lânguidos e intimistas, depois vinha Coltrane, o impressionista do jazz, colorindo o ambiente num serpentear de notas, respirações, intenções... E ele, à volta dela, fotografando-a... Ela namorava a objectiva, sentia no corpo nu o calor e o som dos olhares dele. Do fundo da sala, vinha o som de uma voz de mulher. Estava deitada no chão, os longos cabelos negros espalhados nas amplas almofadas vermelhas. Trocava palavras, olhares e pequenas carícias com o homem sentado a seu lado, fumando uma cigarrilha no ar ausente de quem está preste a dizer algo de seminal.
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Olhou para a companheira de longa data e sorriu. Depois, elevou o olhar e abarcou com ele o resto da sala e todos os que lá se encontravam. À sua frente, afundado no cadeirão de pele desbotada, Lawrence Ferlinguetti cofiava a longa barba hirsuta e ia compondo versos para a mulher que atravessa a Piazza “Bocca della Verita”. No canto oposto ao autismo fotográfico de nudez luxuriante, Bill Evans, acompanhado por um Tony Wiliams não muito confortável nas congas, improvisava no piano, estruturas modais, que flirtavam com os acordes de Red Garland que serviam de base aos solos de Miles e Coltrane que enchiam a sala. O som da aparelhagem que revivia o mítico quinteto tinha uma intensidade intimista, o suficiente para deixar sobressair o piano e as congas, sem no entanto abafar a calorosa discussão que ocupava o canto restante. À volta de uma mesa rectangular, o clássico arranjo de dois sofás pequenos e um grande. Num dos sofás pequenos, de costas para os músicos, Timothy Leary depois de ter lambido um selo colorido, impregnado de ácido lisérgico, repetia incessantemente, como se fosse um mantra, “Turn on, Tune in, Drop out”, viajando para outros debates e discussões. No sofá grandalhão, os quase inseparáveis William Burroughs e Allen Ginsberg opinavam sobre o título a dar ao último romance do primeiro. Interzone, acentuava o homem do inseparável chapéu no olhar por detrás da morfina, Naked Lunch, contrapunha o sempre jovem de óculos, do cimo da fama do seu poema épico “Howl”. No sofá restante, um jovem Tom Waitts, com olhar maravilhado, congeminava uma ópera bufa. Veio-lhe à cabeça o nome de Black Rider.
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Jack Kerouac, aclarou a garganta, mas de nada serviu, ninguém o ouvia. Então, decidido a chamar a atenção para o que queria fazer, levantou-se no salto ágil. Pegou no sax alto abandonado nas almofadas coloridas e soprou com força o acorde inicial do Round Midnight, completamente fora de tom. Parecia um momento congelado no tempo. Todos os personagens ficaram parados no eco a desfazer-se, com excepção do par cativo no buraco negro dos olhares. Também foi para eles que Jack recitou o seu último Aiku, acabado de compor. Birds singing / in the dark / -Rainy Dawn.
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Voltou a sentar-se, satisfeito com a receptividade do grupo ao poema e voltando-se para a companheira que lhe estendia um copo de Jack Daniels, perguntou-lhe, Gostas, Eddie? Achas que tem Beat? E sem esperar pela resposta centrou o olhar no corpo nu difuso, para lá da cortina branca de luz e poeira suspensa que entrava pela porta da pequena varanda. O brilho das pérolas brancas misturava-se com o brilho dos pequenos grão de poeira que flutuavam no ar. Os olhares feito imagens, misturavam-se com os sons lânguidos do trompete...
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. Texto escrito em conjunto por Excitações & Laura’sex life
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. ( Reprise do Texto publicado no Excitações - Primeiro Set )
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38 comentários:

Jaime disse...

A culpa é do "sistema"!

Abssinto disse...

Estiveram lá todos. Como dizia o Neal Cassidy no "Pela Estrada Fora":

"Sopra! sopra!"

Bj

Jaime disse...

É só drógados! (e filatelistas) :-)
Beijinhos sistemáticos.

Divinius disse...

Gostei de ler...
Obrigado pelas tuas visitas.
Bjs:)*

Peach disse...

Lembro-me bem deste post :)

lembro-me bem das fotos. tudo intenso... como deve ser.

beijo

Heduardo Kiesse disse...

como sempre, irrepreensível!!!
gostei, de mais...

Edu

~pi disse...

a mais bela voz: de dentro:

tema letras

pa lavras

imagem





~

Devaneante disse...

Sentamo-nos e partilhamos um copo de Jack Daniels?

Shelyak disse...

Escrito por tão belo par, só poderia sair algo assim tão envolvente e apaixonante...
A foto...pois... lembro-me bem do outro post... em que eram duas, lado a lado... ufffffffffffffffffff...
:)))))

Anónimo disse...

olá!
sou adm. do O Fogo Anda Comigo (thefirewalkswithme.blogspot.com)
e gostaria de ser um parceiro seu...
abraços!

danizitha disse...

querida amiga, eu mudei de blog
http://opradodaborboleta.blogspot.com/

beijinhos

Unknown disse...

Reconheço bem esta fotografia... misturada com este som só digo uma coisa: flutuo...

Beijoca*

JOTA ENE ✔ disse...

Passei para ler mais umas palavras à Maria

Bjos e abraços fotografados

Laura Ferreira disse...

espero é que venha mais...

D. Sebastião disse...

Foi um prazer redescoberto encontrar aqui este texto.

Beijo, amiga.

ANTONIO SARAMAGO disse...

Tanta Excitação, que quem por cá passa fica de tal forma excitado que não quer de certeza mudar de página

luafeiticeira disse...

Sentimo-nos embriagados com música, cor, cheiro...
beijos "bucólicos"

Anónimo disse...

Sempre gostei de saxofone. Agora percebo porquê.

ANTONIO SARAMAGO disse...

És tão Excitante que não queres passar outra postagem para cima desta, não dês mais cabo dos nossos olhos! Não se para de ler!!!
Se me acontecer algo de mal, já sabes que foste a culpada.

Helena disse...

Mas que bela surpresa! Mas que bela recordação!
Bom de reler e voar...e ficar.
Beijos em mi bémol

luafeiticeira disse...

Tenho um jogo para imprimires:-)
jocas

PDuarte disse...

Li, ouvi e respirei o teu post.

Pearl disse...

Adorei...nada mais há a dizer!!

beijinho

Flávio Dantas disse...

eu tava sumido né? hahaha
mas estou voltando!! :}

Jo disse...

recordo-me bem deste delicioso relato. sabe sempre bem lê-lo.

beijos**

Anónimo disse...

Não conhecia o Mount Gay e no entanto gosto imenso de rum e até me considerava apreciador. Fiquei com curiosidade e, confesso, um pouco baralhado com a conotação do nome, vai daí e informei-me. Rapidamente me apercebi que era considerado o melhor rum do mundo, vai daí e provei. E provei. E provei. E vai daí e desatei a bebemorar tudo aquilo a que tinha e não tinha direito e os posts (mas que raio de nome) foram rapidamente para o espaço tal como tinhas previsto. Na bebomoração não faltou essa coisa extraordinária chamada de imaginação que, em doses qb, é inofensiva e lá vai salgando a preceito.
Não há à venda Mount Gay aqui neste país, de facto é muito difícil de encontrar e comprar e, mesmo em Espanha, só algumas poucas casas da especialidade é que o vendem tanto quanto pude apurar.
Mas afinal como soubeste tu deste segredo? Mais uma acha para a já de si enorme fogueira que é o mistério Maria Mercedes. E claro, diz-me com quem postas e dir-te-ei quem és. Enfim, mais ou menos pois no teu caso a coisa é deveras difícil. Mas que duas que aqui se juntaram, dispenso a imaginação para salgar o que seja, o tempero da parelha é de se tirar o chapéu.

O Profeta disse...

Errantes sentires percorrem
Este corpo nu de calor
Queda-se a vontade ao vento
Neste deserto de verde amor

Ai este grito contido
É lava rubra em minha garganta
Pio de pássaro preso às penas
Uma reza a fugir de alma santa


Boas férias


Mágico beijo

Elcio disse...

Corri c olhos e ouvido por seu blog. Adorei.
Ainda retorno p ler vc c + tempo.
Parabens pela sensibilidade e bom gosto.

É isso ai.
Bjs

Adore disse...

O devaneios tem um mimito para ti :)*

bsh disse...

Perfeito.

É impossível não consumir a genialidade que aqui vai.

http://desabafos-solitarios.blogspot.com/

JOTA ENE ✔ disse...

Ola Maria,

sempre com post's notaveis e onde não pode faltar a fotografia.

Fika bem e abraços e bjos por aí.

Mizé disse...

Olá!

Desculpa a invasão mas nem sei bem como vim cá ter... Não resisti e acabei por ficar simplesmente vidrada no ecran a ler-te... Tenho algo a dizer-te:
Um Blog Fabulástico!! Fiquei "viciada"!! Vou cá voltar mais vezes!!

Continua assim!!

Lyra disse...

Voltei de férias e vim feliz!
Há sol dentro de mim
Respiro todas as cores
Há Verão, há flores
Como é bom sentirmo-nos assim!

E é bom voltar a este espaço.

Aparece!

Um grande beijinho e até breve.

;O)

Anónimo disse...

tenho uma memória ainda intensa e fresca de me lerem poemas eróticos na cama. contar histórias, ler e ouvir palavras carregadas de desejo pode ser um afrodisíaco fabuloso.

Malena disse...

Mª Mercedes, has sabido componer un ambiente especial con tus palabras y el solo de saxo lo ha completado.

Felicidades!

Um beijo.

etienne neto disse...

Passei por cá...por acaso e... por cá fiquei a ler e a ouvir.
Parabéns por este excelente Blog.
Tenho tambem um blog mas que um pouco (muito) diferente do teu. Se quiseres fazer uma visita, és bem vinda.
www.dashelter.blogspot.com
Até Breve pois vou cá voltar com certeza.
Etienne

Shelyak disse...

Tenho saudades vossas!!!

luafeiticeira disse...

E então, deixas-nos expectantes...
Beijos da Bela ou do Monstro, como preferires...

 
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